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Crónica

Sobre a Mutilação Genital Feminina

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No passado mês de Julho, ao fazer o meu habitual scroll matinal pelo feed do Facebook, deparei-me com uma notícia do jornal Observador que relatava o caso de uma mulher da Amadora, em Lisboa, que praticou o crime de mutilação genital contra a sua filha de dois anos. A mulher, informou a Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, é acusada pelo Ministério Público de ter utilizado um “objeto de natureza corto-contundente” para cortar “a região vulvar da menor, sabendo que com tal conduta mutilava a menor nos seus genitais, provocando-lhe dores, lesões e sequelas permanentes e aptas a afetar a fruição sexual daquela”. A mãe da criança encontra-se atualmente à espera de julgamento em liberdade condicional. Como seria de esperar, esta notícia chocou-me profundamente e levou-me a pesquisar mais sobre esta temática relativamente à qual, vergonhosamente, sabia manifestamente pouco.

A mutilação genital feminina (ou circuncisão feminina) pode ser definida como a remoção parcial ou total dos órgãos genitais externos de bebés, crianças ou adolescentes do sexo feminino. Esta prática é maioritariamente levada a cabo em África, no Médio Oriente e na Ásia, sendo também frequente noutros países em que estão presentes comunidades entre as quais a mutilação genital feminina é comum e vista como natural, estimando-se que centenas de milhões de mulheres vivam com lesões causadas por este costume bárbaro. A maior parte das vítimas é mutilada antes dos cinco anos e o ritual está sempre ligado a um ideal de pureza e beleza. Durante este procedimento são removidos o clitóris, os lábios vaginais menores e os lábios vaginais maiores. Depois, a ferida resultante destes cortes é suturada e é deixado um pequeno orifício para a libertação da urina e da menstruação. Este processo leva a que as mulheres desenvolvam infeções (que podem resultar na sua morte), dores crónicas, faz com que tenham dificuldade a eliminar a urina e o fluxo menstrual, faz com que tenham complicações no parto e que sofram dores horríveis durante as relações sexuais, além do profundo trauma psicológico que experienciam, provocado por um acto de violência tão vil, tão torpe, indescritível, que imagino que nunca as irá abandonar para o resto da vida.

Durante a minha pesquisa descobri que noventa e oito por cento das mulheres somali sofreram mutilação genital feminina. Para pôr este número em perspetiva, façamos umas contas simples: a Somália tem uma população de 15 milhões de pessoas. Supondo que, pelas leis básicas de genética populacional, metade desta população é constituída por mulheres, isto significa que, aproximadamente, cerca de 7,5 milhões de mulheres somali foram vítimas de castração. Em Portugal existem 5 milhões de mulheres, na totalidade. Estes números são absolutamente assustadores. Na sequência deste raciocínio aritmético e, como seria de esperar, devido à notícia mencionada no início desta crónica, decidi aprofundar a minha pesquisa sobre este flagelo no nosso país. Ingenuamente, esperava encontrar apenas casos residuais, confirmar talvez a ideia de um pressuposto estado de evolução social do país em que vivemos. Mas enganei-me redondamente. Em Portugal terão ocorrido no ano passado 129 casos de mutilação genital e, de acordo com o jornal Sábado, estima-se que em Portugal vivam 6.500 mulheres circuncidadas. O que pensar ou dizer sobre estes números? Deixo que seja o leitor a refletir sobre eles…

Algumas pessoas questionam boçalmente a necessidade do feminismo nos dias de hoje, argumentando que as mulheres já usufruem de todos os mesmos direitos que os homens. O que tais observações falham a compreender é que a igualdade pela qual o movimento feminista luta atualmente vai além de uma igualdade perante a lei; o movimento feminista luta por uma mudança de mentalidades, luta contra os falsos moralismos podres, luta contra o olhar desigual da sociedade global perante a mulher – sociedade esta em que, como já vimos, a sua autodeterminação sexual é ainda, por vezes, impedida pelo violento estropiar dos seus corpos.

Em Portugal a Mutilação Genital Feminina é crime autónomo desde 2015, conforme artigo 144º A do Código Penal, cuja pena aplicável é de prisão de dois a dez anos.

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