Crónica
25 de Abril para imigrantes
Minha maior referência de cravos antes de vir morar na invicta cidade do Porto era a infantil cantiga que minha avó me cantava antes de dormir. Aquela sobre violência doméstica em que a rosa revidava as agressões que sofria e o cravo saia ferido, acabando no hospital. Bela cantiga, por sinal. Sempre me lembro dela quando vejo o casamento de alguns de meus amigos. Ou quando abro o jornal e me deparo com os índices de feminicídio do último ano.
Para mim, portanto, cravos durante muito tempo só representavam péssimos relacionamentos, embebidos em toxicidade, abuso e casos de violência doméstica. O cravo brigou com a rosa debaixo de uma sacada, o cravo saiu ferido, a rosa despedaçada. Uma clara desproporcionalidade de poder, visto que sair despedaçada de uma briga é, claramente, de uma selvageria muito superior a sair somente ferido. Inequalidades de gênero. Faz parte.
Por isso nunca tinha gostado muito de cravos. Estava demasiadamente associada, na minha cabeça, essa flor com homens agressivos. Culpo a música infantil popular por isso. A novela da Globo com o mesmo nome da cantiga também pode ter induzido um pouco a essa ideia. Não me lembro muito da novela, só do desgosto que o ator principal me causava. A representação do Cravo, no caso. Não me parecia uma boa pessoa, embora a telenovela tentasse nos convencer que ele era. A Rosa merecia alguém melhor e mais bonito que ele. Homem babaca, insensível. Culpo meus pais, em parte, por isso. De não conseguir romantizar relacionamentos abusivos. Eles sempre foram um péssimo exemplo, com um casamento demasiadamente saudável e absurdos como respeito mútuo e companheirismo. Acho que por isso passo a maior parte de minha vida solteira. Tenho expectativas altas demais quanto ao respeito mínimo que um cônjuge deveria ter. Voltando aos cravos.
Até chegar em Portugal nunca tive, portanto, uma visão muito positiva dos cravos. Florzinha meio insossa, sem graça. Não se compara ao lírio, ou às violetas. Violetas são elegantes, gentis. Tem todo o simbolismo com o espiritismo kardecista, violetas na janela. Cravos não, aos cravos sobrava a cantiga infantil de violência doméstica. Até conhecer o 25 de abril.
Não que eu seja uma completa energúmena, sem qualquer tipo de conhecimento desse pedacinho de terra do outro lado do Atlântico que hoje em dia é minha casa. Conheço bastante da literatura portuguesa – Valter Hugo Mãe, Saramago, Eça, Camões – e sei um pouquinho da história. Percebo minimamente a questão da Reconquista, entendo as Grandes Navegações, o colonialismo – mais do que gostaria, entendo muito bem o colonialismo. D. Dinis, Afonso Henriques, Marquês de Pombal, D. João VI, conheço todos esses nomes; não seria diferente com Salazar. Decerto que meu estudo no colégio acerca do Salazarismo, tal qual o Franquismo, não foi tão extenso, tampouco tão detalhado quanto a abordagem de Vargas ou do Terceiro Reich. Mas tenho alguma noção. Não muita noção. Mas alguma noção.
Contudo, não noção o suficiente para saber como que o Portugal agrário e fascista se tornou o Portugal da União Europeia, turismo e pastel de nata. Tinha uma certa falta de informação na minha linha do tempo mental. Não me fazia falta na minha vida latino-americana, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes etc., etc., Belchior. Enfim. Mas agora, na minha vida europeia, une tasse de café et un shot de whisky s’il vous plaît, faz falta. Então, fiz aquilo que deveria ser feito. Li todos os artigos da Wikipédia sobre a história contemporânea de Portugal.
Poderia ter comprado e lido um livro da história de Portugal? Certamente. O fiz? Mas é claro que não. Não pela falta de vontade, devo dizer. Mas porque sou criteriosa. Bem, talvez não tão criteriosa, visto que só tenho um critério. Mas não encontrei nenhum livro que passasse por esse critério. Então devo ser criteriosa. Não pedia muito, contudo. Só um livro que não chamasse as Grandes Navegações de Descobrimentos. Descobrimentos, termo tão antiquado, démodé. Não encontrei, então contentei-me com o Diderot do século XXI.
Até que me deparei:
“A Revolução de 25 de Abril, também conhecida como Revolução dos Cravos ou Revolução de Abril, refere-se a um evento da história de Portugal resultante do movimento político e social, ocorrido a 25 de abril de 1974, que depôs o regime ditatorial do Estado Novo, vigente desde 1933, e que iniciou um processo que viria a terminar com a implantação de um regime democrático e com a entrada em vigor da nova Constituição a 25 de abril de 1976, marcada por forte orientação socialista.”
Encantei-me. Como nunca tinha ouvido falar disso? Sempre escutei que o Brasil era uma democracia tardia, como jamais soube que nosso padrasto seguiu os mesmos passos? E os detalhes, ora, os detalhes são deslumbrantes. Um movimento civil-militar de caráter socialista. De caráter socialista! Onde já se viu militar socialista? Onde já se viu militar dar um golpe sem ser por ordem dos Estados Unidos e implantar em seu país uma ditadura entreguista sanguinária sob o preceito do perigo do comunismo.
Passei a amar os cravos.
Um movimento tão rico que causou tantas mudanças ao país. Se Portugal não é mais aquele paíseco que nós, no Brasil, só conhecemos pelos imigrantes que fugiam de lá em busca de oportunidades no Novo Mundo, o motivo é essa grandiosa revolução. Revolução dos Cravos. Guardei comigo.
E me impressiona, devo admitir, como os portugueses tratam a data com tamanha normalidade. Tamanha insignificância. Sim, decerto, há aqueles que valorizam o 25 de abril. Mas, amigos! Consanguíneos de muitas gerações, vocês precisam dar mais valor a essa data! Tamanha é a raridade de qualquer movimento minimamente inspirado pelo socialismo que não termina em golpe de Estado subsidiado pelo tio Sam. Privilégios de europeu. É a única justificativa que posso encontrar.
Onde estão os parques, as praças, as ruas com os nomes daqueles que participaram da Revolução? Onde estão os monumentos exaltando os movimentos estudantis da época, ou os revolucionários que deram a vida pela causa? A Praça da Liberdade, centro do Porto, exalta um monarquista que passou sífilis para metade da cidade do Rio de Janeiro, e gonorreia para a outra. Por que não exaltar o 25 de Abril? Isso sim é Liberdade, com L maiúsculo. Liberdade contemporânea, que traz o Serviço Nacional de Saúde, democratiza a educação, diminui a mortalidade infantil e o analfabetismo, faz Portugal entrar na União Europeia, melhora a economia, industrializar, modernizar, sair do passado tão agrário, tão analfabeto, tão pouco europeu em que as amarras ditatoriais prendiam o Estado em potencial. O Estado que Portugal é hoje.
Não há bandeira, não há postagem em rede social que seja suficiente para homenagear a Revolução dos Cravos. Esta deveria ser lembrada, vivida, experienciada o ano inteiro. Não apenas no fim de abril. Não é um ponto de trabalho a se bater todo ano. É uma vitória. Uma glória. O ponto alto da história portuguesa. Por que se orgulhar de invadir meio mundo, causar genocídio, dor, colonização e sofrimento quando se tem em si os Cravos? Por que se dá tamanha importância a um passado distante, monárquico e sanguinário quando a história recente é tão mais bela e tão mais digna de orgulho?
Orgulhem-se, portugueses. Orgulhem-se mesmo de sua história. Não de Vasco da Gama, tampouco dos reis e rainhas e fidalgos que tal como carniceiros, só comiam da carne daqueles que morriam de fome. Orgulhem-se das flores. Da cultura. Do decolonialismo. Orgulhem-se dos estudantes que lutaram contra o fascismo e dos militares que empunharam armas contra a ditadura. Orgulhem-se de quem se recusou a ir à guerra apoiar um regime colonial genocida, orgulhem-se de quem morreu por Portugal. Portugal, não um império colonial. Portugal, onde o povo vive. Portugal, somente Portugal.
Enfim, não associo mais os cravos exclusivamente à violência e às novelas da Globo. Pude ressignificar a flor.
Espero que vocês também consigam ressignificar o que é ser português.
Artigo da autoria de Débora Magalhães Binatti