Artigo de Opinião
A inconstância da memória
No passado dia 11 de novembro, celebrou-se o aniversário do armistício assinado na floresta francesa em Compiègne, no ano de 1918, entre as forças Aliadas e a Alemanha. Foi esta formalidade que colocou um ponto final nas hostilidades que ceifaram milhões de vidas, fustigando o Velho Continente durante quatro penosos anos e, embora seja importante e louvável a lembrança do passado através de solenidades pontuais, não devemos esperar por elas para relembrar.
Desengane-se quem pensa que aos historiadores apenas interessa o antigo. Na verdade, essa paixão em compreender as eras passadas está intimamente ligada ao presente e futuro. E, ainda que eventos passados suscitem grande interesse por si só, estudamo-los principalmente porque queremos compreender o nosso percurso até ao século XXI.
A memória deve combater os erros e os crimes do passado. Num mundo que se canibalizou por poder e orgulho, parece cada vez mais evidente a ausência de vínculo entre a Humanidade e a sua História. Quem escolhe esquecer estará condenado a cometer os erros do passado e quem procura fazer esquecer viola o direito fundamental de todos nós ao conhecimento.
Sempre procurei manter a crença na compaixão inerente ao ser humano. Todos nós desejamos ajudar-nos uns aos outros. Os seres humanos são assim. Sempre acreditei na bondade para com o próximo, no desejo de prosperidade daqueles que nos rodeiam e não do seu infortúnio. O caminho da vida sempre me pareceu algo belo e gentil, contudo, ao longo dos últimos anos, tem sido extremamente difícil continuar a alimentar esta crença na bondade intrínseca da humanidade.
Ainda que tenhamos desenvolvido velocidade, o isolamento é cada vez maior. As tecnologias que nos poderiam trazer abundância, deixaram-nos na penúria. A própria criação do avião, da rádio, da televisão e da internet apelam ao desejo de união e fraternidade universal e, no entanto, o mundo encontra-se barricado em ódio e mais dividido que nunca.
Olho para as páginas do grande livro da História e todo ele parece um único e interminável capítulo de conflitos, derramamento de sangue e ganância. Milhões de pessoas sofreram sob o jugo de ditadores cuja amargura sempre temeu o progresso humano. Outros tantos experimentaram a sede de poder de governantes que procuravam açambarcar um pedaço de território. É assustadoramente extraordinário como se sacrificam vidas humanas por tamanhas futilidades. Inocentes foram tratados como gado e, ainda que me custe imenso escrevê-lo, essa continua a ser a realidade.
Vivemos num literal pedaço de terra e rocha, entre milhares de milhões de gases e outras rochas semelhantes. A nossa casa é especial e única e nem numa altura em que se encontra em clara deterioração conseguimos apresentar uma frente unida de modo a resolver um problema que põe em causa a nossa continuidade enquanto espécie. É estupendo como as alterações climáticas conseguem gerar tanta discórdia e como um vírus logrou aumentar ainda mais as discrepâncias entre as zonas mais e menos desenvolvidas do globo.
O ser humano é verdadeiramente genial, para o melhor ou o pior, e não deixa de ser curioso que os maiores avanços tecnológicos se tenham dado em épocas de conflito. A tecnologia alemã destinada à destruição durante a Segunda Grande Guerra foi a mesma que colocou o Homem na Lua. Os trabalhos de Fritz Haber permitiram o desenvolvimento de fertilizantes que trouxeram mais abundância de alimentos, mas, por outro lado, as suas descobertas contribuíram para o desenvolvimento do gás usado para matar milhares de pessoas durante o terceiro reich. Parece que, para cada boa ação, existe sempre alguém que procura tirar o pior partido da bondade humana, seja por lucro ou simplesmente pura maldade. Os ditadores libertam-se a si mesmos enquanto escravizam todos aqueles que os seguem. Perante uma assustadora e familiar conjunção de circunstâncias em que vidas humanas são desprezadas, devemos, mais do que nunca, olhar para trás e aprender, não só com as brutalidades do passado, mas também com tudo o que de bom alcançamos.
É verdade que o passado pode magoar. Resta-nos fugir dele ou aprender com ele. Ao contrário do que se pensa, paz significa muito mais do que apenas ausência de conflito e a verdade é que a Humanidade está em guerra consigo mesma há séculos. Nunca vivemos num mundo decente e essa ideia parece cada vez mais próxima de uma utopia. Mais do que inteligência, precisamos de compaixão, pois sem a expressão desta virtude que está presente em todos os corações humanos, a vida continuará a ser violenta. Enquanto homens e mulheres morrerem, a liberdade nunca perecerá e enquanto o relato das eras continuar a ser redigido no cosmos, os atos de puro altruísmo não serão esquecidos.
A inveja é sorrateira e vivemos hoje numa realidade construída sobre as cicatrizes do passado. O ódio existe impregnado na nossa sociedade e, ainda que seja difícil encontrar atos de bondade em tamanhas práticas de maldade humana generalizada como o Holocausto, eles existem. A árvore de Schindler continua a crescer e a sua lista é apenas um dos muitos exemplos de fé na capacidade humana de praticar o bem. Quem salva uma vida, salva o mundo por inteiro e enquanto existirem pessoas que acreditem veementemente nesta ideia, a esperança nunca será perdida.
Artigo da autoria de Afonso Morango