Devaneios
A Escultura do Pensamento
Antes de qualquer coisa, queria dizer que eu amo o jornalismo experimental e a força de uma conversa na cozinha de casa. O meu devaneio de hoje — e poderia ser uma proposta transmídia —, foi e agora é, sobre um papo que tive com a Sophia (@nsphms), estudante da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, brasileira e conterrânea da minha Fortaleza. Por irônia do destino — ou por capricho da vida —, a gente se conheceu aqui no Porto.
Reflexão do dia foi a performance escolhida e apresentada pela artista no Serralves em Festa 2023, evento esse que dispensa apresentações, mas para não passar batido, trata-se de uma virada cultura que integra a região do Porto e arredores em 50 horas ininterruptas de acesso à cultura e arte no plural. Talvez o evento gratuito mais significativo ao qual infelizmente não pude ir. E não há tantos eventos “gratuitos” aqui.
Segundo a artista, reflexão do dia é um monólogo criado com a ajuda do ChatGPT, mas que também se utiliza de referências de vídeos de memes da internet. A ideação é que os textos possam gerar uma reflexão, instalando-se numa metáfora de palavras profundas, mas que, na verdade, não passam de baboseira de internet. Tudo com um pouco de drama e emoção performados pela artista.
Com uma abordagem baseada no nosense, a performance quebra com a lógica pré-estabelecida das situações quotidianas. Estamos diante de uma performance para desmitificar a ideia civilizatória de performances sociais ao apresentar uma narrativa engraçada e espontânea que faz você pensar a partir de reflexões dadas pela AI.
O frigorífico performando uma caixinha de músicas
Segundo Sophia, a obra é como se fosse uma caixinha de música: “tipo, por fora se ver o frigorífico normal, com aspeto de geladeira normal. Mas por dentro, eu instalei um sistema de som que, quando você abre a porta, a música começa a tocar como numa caixinha de músicas”, explica.
A peça-obra “frigorífico” tem o seu interior todo revestido por autocolantes brilhantes desses que vendem nos chineses – e isso diz muito sobre o brilho fajuto das coisas e o violento poder de reprodução dessa nação populosa. Sophia disse que, no começo, ela não sabia muito bem o que queria fazer.
“Aquilo, na verdade, é uma proposta que a gente tem de desenvolver no semestre inteiro. Mas eu só lembrei que eu queria trabalhar com frigoríficos, sabe? Queria transformar. Eu só acho que de um jeito muito íntimo, e inconsciente, eu gosto de geladeira. Para mim, é uma coisa tipo normal. Tem geladeira na minha casa. E tipo, sei lá, é um objeto que você conhece desde sempre e que pede por organização”.
A obra é um convite para adentrar em seus sonhos. Não tem como definir a sensação, você tem de ir lá para abrir e descobrir o que tem. Ouvir a música e deixar as ondas sonoras te baterem… wave… e o tempo…
Sophia já é conhecida nas Belas Artes. A brasileira que impacta com performances “fora da caixa” e obras tidas como disruptivas. Roupas de carne de frango, coluna de som aos berros tocando brega – ritmo musical do Brasil. Sobre tudo que fuja da ideia renascentista de arte. Dessa ideação do belo geométrico simbólico e higienizado (religioso e normativo, ufa!).
As coisas sem sentido são aquelas que não servem o capital
Arte é coisa de gente. Toda a manifestação social deve ser empoderada e servida no prato como arte. Beba, coma. Mas será que estamos preparados para entender que arte não é apenas aquilo que fica exposto nos museus e galerias?
Toda a desconstrução disruptiva serve a uma logística do contra e todo humano gosta de se manifestar. É a sua forma mais genuína de dizer “f***-se”. É chamar atenção para dizer que não se importa. “Olha, eu tô aqui, me perceba e veja que não me importo”. Controverso, talvez…, mas quem não é um bocadinho burocrático e hipócrita nessa vida?
Memes, stories de life style, tik tok e a arte de consumir o quotidiano performático do outro em depreciação da nossa própria vida. O novo mal do século é a nossa mutilação enquanto outro. E aqui cabem referências ao [ultra]romantismo que volta a se instaurar em nossas vidas, esta que foge cada vez mais do realismo, assassinando a razão presenteada pelo racionalismo iluminista. Não tem como prolongar, só sentir.Estamos vivendo uma nova vanguarda pixeladista que criptografa as nossas sensações mais subjetivas e comercializa individualidades perfeccionistas. E como dizia Caetano Veloso,
“Se fossemos em política o que somos em estética”.
I like this…
O lugar da Arte na Era Digital — e da reprodutibilidade
É inegável que a Era Digital trouxe consigo uma transformação significativa na maneira como a arte é produzida, consumida e distribuída. A reprodutibilidade em massa, um fenômeno característico dessa nova era, levanta questões intrigantes sobre o lugar da arte na sociedade contemporânea.
Em todo lugar!
Seguindo as ideias do filósofo alemão Walter Benjamin, a aura da obra de arte tende a ser corroída quando esta se torna facilmente reproduzível. A multiplicação de cópias digitais parece minar a singularidade das coisas, tornando esse todo acessível a todos.
Ao adotarmos uma perspetiva existencialista, podemos até pensar como a arte digital pode até manter o seu poder expressivo e significado individual na era da sua reprodutibilidade em massa. Mas a ansiedade e a impaciência tornam tudo muito raso. A sensação de supressa é esgotada e o desejo de mais sempre insaciável. Tudo novo, de novo e de novo.
Então, é assim uma democratização do acesso à arte? A disponibilidade generalizada permite que mais pessoas tenham acesso a diferentes formas de expressão, desafiando as limitações do espaço físico e democratizando o acesso à cultura. Ou tudo é um espaço instagramável a espera de ser publicizado?
Expressionismo digital. Ou quem sabe, uma arte que encontra o seu sentido no percurso. Ela parte de um vazio inexpressivo e vai se conectando na medida que se encontra com os novos modos de vê-la, senti-la, concebe-la… e então temos o papel indispensável desse outro que faz dela cada vez mais real.
A realidade segue sendo inventada com o passar dos anos…
Essa tal Era Digital promete oferecer novas possibilidades para a interação do público com a arte. E, nesse sentido, a reprodutibilidade em massa pode gerar um diálogo mais amplo e diversificado, promovendo a reflexão e o engajamento social, mas também tornado tudo mais ligeiro e algumas vezes até sem sentido.
E a reflexão do dia é a anedota da goiaba no pé: tá madura e pronta para ser comida, mas prefere ficar lá para ser admirada até apodrecer.
Artigo da autoria de Ícaro Machado