Ciência e Saúde

A ciência do género

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Na comunidade científica, “género” e “sexo” são aceites como sendo conceitos distintos – e nenhum dos dois é binário.

Com o início do mês de julho, dá-se por terminado mais um Mês do Orgulho LGBT+, também conhecido pelo termo inglês Pride Month. Os preconceitos societais impediram, durante muito tempo, que houvesse uma compreensão puramente científica da diversidade de género na espécie humana. Hoje, sabe-se que  “género” e “sexo” são conceitos distintos, e que nenhum dos dois tem o caráter binário que comumente lhes é atribuído.

Género e sexo: qual a diferença?

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, sexo é o conjunto das “diferentes características biológicas e fisiológicas de fêmeas, machos e pessoas intersexo, como os cromossomas, hormonas e órgãos reprodutivos”.

Por outro lado, o género corresponde às “características de mulheres, homens, raparigas e rapazes que são socialmente construídas”. A OMS explica ainda que “isto inclui normas, comportamentos e papéis associados [socialmente] com ser-se mulher, homem, rapariga ou rapaz […]”, uma perceção que “varia de sociedade para sociedade” e, portanto, também “pode variar ao longo do tempo”.

Este conceito é ainda distinto de identidade de género, que corresponde à “experiência de género […] interna e individual de uma pessoa, que pode ou não corresponder à fisiologia da pessoa ou ao sexo designado no nascimento.”

Estas definições são reconhecidas mundialmente pela comunidade científica, sendo adotadas, entre outros, pelo Serviço Nacional de Saúde Inglês; pela Direção Geral da Saúde Portuguesa; e pelo Jornal “Nature”, a revista científica mais citada em todo o mundo.

É ainda relevante referir que o sexo e o género são diferentes da orientação sexual, sendo esta simplesmente referente ao género ao qual uma pessoa se sente afetivamente e/ou sexualmente atraída. Alguns exemplos são a homossexualidade (atração por pessoas do mesmo género) e a heterossexualidade (atração por pessoas do género oposto). A homossexualidade é comum na natureza, tendo sido documentada em mais 1500 espécies de animais.

Como é determinado o sexo de cada indivíduo?

O sexo de cada ser humano — e de muitas espécies de animais — resulta de um conjunto de fatores biológicos que se desenvolvem ao longo do tempo, maioritariamente até à puberdade.

Assim, a determinação do sexo de cada um está dependente de quatro níveis principais. O primeiro é o sexo cromossómico, definido no momento da fertilização, quando o embrião herda os cromossomas sexuais – na maioria dos casos, XX ou XY. O segundo é o sexo gonadal, que se refere às gónadas (ovários ou testículos), cuja formação depende da expressão de vários genes – muitos deles externos aos cromossomas sexuais X e Y. O terceiro é o sexo anatómico, que corresponde ao desenvolvimento dos genitais internos e externos, influenciado por hormonas produzidas pelas gónadas. Finalmente, o último fator é o sexo fenotípico, que corresponde às características sexuais visíveis externamente, incluindo a aparência e estrutura corporal.

Como tudo na natureza, dentro destes níveis de determinação sexual existem inúmeras variações naturais. Algumas pessoas nascem com Diferenças no Desenvolvimento Sexual (DSD), como é o caso da Síndrome de Swyer. Nesta síndrome, os indivíduos apresentam cromossomas XY, mas desenvolvem gónadas, genitais e aparência femininas, podendo mesmo engravidar. Outro exemplo é o Síndrome de Klinefelter, que se caracteriza pela presença de dois cromossomas X e um Y (XXY). Existe ainda o mosaicismo, que ocorre quando diferentes células do corpo têm sexos genéticos distintos.

Estima-se que 1,7% da população mundial seja intersexo — isto é, apresentam características sexuais, como os genitais, cromossomas, ou órgãos reprodutivos, que não se enquadram na noção binária de sexo. 1,7% da população mundial corresponde aproximadamente à soma da população de Portugal, Espanha e França.

Cientificamente, o sexo é visto como um espetro biológico e não como uma dicotomia absoluta. Esta perspetiva não invalida categorias como “homem” ou “mulher”, mas ajuda à compreensão de que a diversidade humana começa logo ao nível mais básico: o da biologia.

 

A grande variabilidade no processo de determinação do sexo leva a que este não seja binário, mas sim um espetro. Imagem adaptada do inglês. Créditos: Christoph Rehmann-Sutter et al., 2023.

Como é determinado o género de cada indivíduo?

Atendendo à sua natureza cultural, a determinação do género está profundamente ligada à autoidentificação. O género desenvolve-se ao longo da vida, estando relacionado com a forma como cada pessoa se vê e se sente no mundo. Por este motivo, a melhor fonte para se determinar o género de cada indivíduo é, precisamente, o próprio indivíduo.

O género é, fundamentalmente, uma construção social, tal como o é o dinheiro ou o casamento. Precisamente por isto, a noção de género varia entre diferentes culturas e épocas. Existem culturas indígenas que reconhecem múltiplos géneros; paralelamente, já na Roma Antiga, a imperadora Heliogábalo usava pronomes femininos.

Quando a identidade de género de um indivíduo corresponde ao sexo que lhe foi atribuído à nascença, diz-se que essa pessoa é cisgénero. Quando a identidade é diferente do sexo atribuído à nascença, diz-se que a pessoa é transgénero.

Apesar de os papéis de género variarem com a cultura, o sentido interno de identidade de género surge cedo, e não é algo que se aprende ou se ensina. Uma pessoa não é transgénero por influência externa, tal como não se é cisgénero por se ter sido convencido disso mesmo. Por volta dos 3 anos, a maioria das crianças já consegue reconhecer e afirmar o seu próprio género. Este sentido interno está também ligado a fatores biológicos, como mostra a neurociência.

As cirurgias de afirmação de género são procedimentos que podem ser feitos por indivíduos transgénero para alinhar as suas características físicas à sua identidade de género. Estima-se que apenas 1% das pessoas transgénero que recorrem a estes procedimentos se arrependem de o fazer, uma prevalência muito reduzida quando comparada com outros procedimentos médicos, como a redução mamária, prostatectomia ou a cirurgia bariátrica. Créditos da imagem: Unsplash.

A neurobiologia do género

A neurobiologia sugere que o género é uma experiência real e mensurável no cérebro de cada indivíduo. Vários estudos de neuroimagiologia mostram que pessoas transgénero apresentam padrões funcionais de ativação cerebral mais semelhantes às pessoas do seu género sentido do que aos do seu sexo biológico. Isto observa-se em áreas relacionadas com perceção corporal, emoções e autoidentidade.

Imagens de cortes sagitais do cérebro com destaque aos locais onde houve diferenças importantes entre grupos com identidade de género diferente, de acordo com dados reunidos a partir de 12 estudos científicos diferentes. Créditos: Alberto Frigerio et al., 2021.

O sexo e o género são frequentemente mal compreendidos quando analisados apenas através dos conceitos da  biologia básica. Tal como a matemática básica não é suficiente para entender a existência de números imaginários, ou a física elementar não consegue descrever o mundo quântico, também na biologia é preciso um conhecimento mais profundo para compreender a sua verdadeira complexidade e diversidade.

A variedade de formas de vida é precisamente o que torna a vida na Terra tão única e resistente. Compreender essa diversidade, também entre os seres humanos, é essencial para promover o respeito, proteger direitos e garantir a dignidade de todas as pessoas.

Artigo por Isabel Santos de Sousa. Revisto por Joana Silva.

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