Ciência e Saúde

BoltzGen: Quando a IA passa da previsão à criação

Published

on

Fonte: BoltzGen, Hanns Stärk

Depois do impacto de modelos como o AlphaFold na previsão de estruturas proteicas,  surgem modelos como o BoltzGen, que criam novas biomoléculas com base em alvos biológicos complexos.

 

No final de outubro, foi apresentado à comunidade científica o BoltzGen, um novo modelo de inteligência artificial (IA) que promete marcar um ponto de viragem na biotecnologia. Desenvolvido pelo estudante de doutoramento Hannes Stark e colaboradores do Massachusetts Institute of Technology (MIT), o BoltzGen distingue-se por ir além das abordagens centradas apenas na previsão estrutural. Em vez de se limitar à análise de moléculas já conhecidas, esta ferramenta foi concebida para desenhar proteínas e péptidos com elevada afinidade e seletividade para alvos biológicos específicos, abrindo assim novas portas para o design racional de fármacos.

Esta abordagem surge como resposta a uma limitação bem conhecida na investigação biomédica. Muitos dos alvos envolvidos em doenças humanas são difíceis de tratar com os medicamentos tradicionais. Em particular, os processos celulares que são regulados a partir de interações entre proteínas são difíceis de abordar, uma vez que estas interações envolvem superfícies complexas. Como tal, proteínas e péptidos desenhados de forma racional podem oferecer soluções mais eficazes que as pequenas moléculas habitualmente usadas como fármacos.

Até agora, a criação de moléculas capazes de atuar nestes contextos era um processo longo, caro e altamente experimental. Os investigadores tinham de recorrer a grandes bibliotecas químicas, testar milhares de candidatos em laboratório e repetir ciclos sucessivos de tentativa e erro, muitas vezes com baixas taxas de sucesso. Mesmo com o apoio de métodos computacionais, a maior parte do trabalho continuava a depender de validação experimental demorada.

Como consequência destas limitações, a inteligência artificial começou a ganhar um papel mais relevante. Durante vários anos, os primeiros avanços da IA na biologia focaram-se na previsão da estrutura de proteínas e péptidos, facilitando a compreensão de como uma proteína se organiza no espaço. No entanto, compreender a estrutura não é suficiente para responder à questão central do design biomolecular, ou seja, o que desenhar para potenciar ou inibir um determinado processo biológico. O BoltzGen procura precisamente preencher esta lacuna, passando da previsão para criação.

A lógica por detrás do modelo pode ser comparada ao fabrico de uma chave feita à medida para uma fechadura específica, um conceito amplamente explorado em técnicas de bioquímica computacional, tais como o encaixe molecular.

Fonte:  EUPATI Open Classroom

Se for possível desenhar uma molécula com a forma e as propriedades corretas, torna-se mais simples inibir, ativar ou modificar processos biológicos relevantes para a saúde. Posto isto, o BoltzGen utiliza o mesmo subtipo de IA utilizado pelo ChatGPT, conhecido como modelo generativo, para desenhar a biomolécula. Para além da classificação ou previsão de resultados, este tipo de modelo consegue gerar novas estruturas, com base em padrões aprendidos a partir de grandes conjuntos de dados.  No caso do BoltzGen, o processo começa com a criação de uma estrutura molecular ainda imperfeita e vai sendo refinado de forma iterativa. A cada passo, o modelo ajusta a geometria tridimensional e a identidade dos aminoácidos, até obter uma molécula estável e compatível com o alvo pretendido. Os investigadores podem ainda definir restrições, como regiões que devem permanecer fixas ou zonas onde a ligação ao alvo é desejada, tornando o desenho mais controlado e biologicamente realista.

Esquema que enfatiza o input e output (a), a duração de cada passo da ferramenta (b) e o worflow do BoltzGen (c). Fonte: Hannes Stärk, Github

Uma das principais vantagens desta abordagem é a integração de várias etapas que, tradicionalmente, eram feitas separadamente. O desenho de biomoléculas costuma envolver diferentes ferramentas para gerar estruturas, ajustar sequências e avaliar estabilidade. O BoltzGen reúne estas fases num único fluxo de trabalho, permitindo gerar e comparar rapidamente vários candidatos antes de avançar para testes.

Para avaliar a robustez do modelo para além do contexto computacional, os autores validaram experimentalmente um conjunto de biomoléculas criadas pelo BoltzGen. O modelo foi aplicado a um total de 26 alvos biológicos distintos, incluindo proteínas, péptidos e nanobodies. As moléculas geradas foram posteriormente produzidas e testadas in vitro, recorrendo a técnicas amplamente utilizadas na bioquímica. Em vários dos sistemas estudados, estas experiências revelaram interações específicas e quantificáveis entre os ligandos desenhados e os respetivos alvos, com afinidades comparáveis às observadas para ligandos já conhecidos, demonstrando assim que os resultados obtidos por via computacional podem traduzir-se em ligações moleculares reais e mensuráveis em ambiente experimental.

Resultados publicados pelos autores relativamente à validade experimental das moléculas criadas pelo BoltzGen. Fonte: BoltzGen: Toward Universal Binder Design

Apesar destes resultados promissores, os investigadores sublinham que o BoltzGen não substitui o protocolo tradicional. Uma molécula que funciona em condições controladas pode comportar-se de forma diferente no organismo humano onde fatores como estabilidade, efeitos secundários e distribuição no corpo desempenham um papel crucial. Além disso, sendo uma tecnologia recente, será essencial que outros grupos científicos testem o modelo de forma independente.

Ainda assim, o BoltzGen representa um sinal claro de como a biotecnologia está a entrar numa nova etapa. Ao acelerar as fases iniciais do desenho molecular, ferramentas deste tipo podem reduzir custos, encurtar prazos e abrir novos caminhos para tratar doenças que atualmente são difíceis de abordar. Mais do que uma solução final, o BoltzGen representa um passo significativo rumo a um futuro em que a inteligência artificial deixa de apenas interpretar a biologia e passa, gradualmente, a ajudar a criá-la.

 

Artigo redigido por Joana Ribeiro da Silva. Revisto por Ana Luísa Silva.

 

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Exit mobile version