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“INSPIRATION PORN”: A DEFICIÊNCIA À LUPA COM HUMOR

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Pedro Bártolo

Ao ouvir Stella Young escalpelizar o mito da pessoa com deficiência encarnar dogmaticamente uma fonte de “inspiração” alheia, sinto, como nunca, as palavras de outro como minhas. Esta comediante, jornalista e ativista, que me foi dada a conhecer por uma amiga, antecipando a cumplicidade que despertaria em mim a TED talk da australiana, consegue desconstruir o fenómeno da idolatração cega da pessoa com deficiência com uma sagacidade e benevolência capazes de acudir aos corações mais sulcados pelo preconceito. Amparando todo a palestra pelas vivências pessoais, Stella reavivou-me memórias similares e tempos em que me debati, entre a dúvida e a resignação, se de facto viver com uma deficiência era motivo para me vangloriar como um farol de resiliência e perseverança.

Felizmente, tal como Stella Young, estive e estou rodeado de gente que fez questão de me “esfregar” na cara a mundanidade dos meus “feitos”, perante quem tenho uma eterna dívida de gratidão. Se assim não fosse, sobejariam os motivos para ostentar um ego palpitante, elencando-se como exemplos, pelos quais já fui prolificamente parabenizado, ser detentor da carta de condução para veículos de categoria B, ter finalizado o ensino secundário, ou – e escalamos agora para um patamar olímpico – propulsionar sem auxílio de outrem a minha cadeira de rodas e ficar sozinho em casa aos 22 anos de idade.

O meu desdém biliar pelo que Stella Young cunhou de forma sublime como “Inspiration Porn” leva-me a ser olhado com particular perplexidade, num país em que os próprios profissionais especializados na área da deficiência perpetuam – e validam – a ideia de que as pessoas com deficiência, palavras da ativista, “existem para inspirar” e não para ser. Por isso, – esta mensagem é para vocês, legião de indivíduos que elevam a herói todo o “coxo” pela circunstância de cruzar o vosso horizonte visual -, entenda-se que a melhor forma de respeitar os cidadãos com deficiência é reconhecer que muitos deles são medianos, vazios de sentimentos nobres e perfeitos energúmenos.

 

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2 Comments

  1. David Guimarães

    30 Jun 2014 at 20:15

    Pedro é importante ressalvar que as pessoas com deficiência nas mais diversas áreas, têm dificuldade em singrar na nossa sociedade. Ou por preconceito descabido, ou também por alguma incapacidade inerente à sua limitação. A interpretação do teu texto poderá levar a uma perspectiva contrária à da heroificação, também negativa, a indiferença.
    Embora o discurso veiculado sobre os deficientes estar subordinado a uma premissa inspiradora falaciosa, não me repugna a compaixão que despertam. Não se deve tentar contrariar este sentimento, que é salutar. No entanto concordo que é necessário desmistificar certos pré conceitos. Neste enquadramento existem bons sentimentos. Active-se sim, a racionalidade.

    Um abraço

    • Pedro Bártolo

      8 Jul 2014 at 15:54

      David, a incapacidade de que falas não é inerente à sua limitação, mas antes às condições desajustadas que a sociedade lhes impõe. Nos países desenvolvidos, impera aquilo que se designa como o “modelo social da deficiência”, onde se assume que esta deriva muito mais das “disabling barriers” existentes no meio do que propriamente da patologia em si. Em Portugal, parece reinar (ainda) o modelo médico da deficiência, que atribui aos cidadãos com necessidades especiais a “responsabilidade” pela situação em que se encontram e impele-os a ajustar-se ao meio, e não o oposto. Talvez por isso quando alguém consegue singrar seja visto como um herói, tamanhos os obstáculos que enfrenta para emancipar-se do rótulo de incapacidade associado à deficiência. Isto não é salutar. Entendo o que queres dizer, de facto a mim também me causa uma compaixão moderada ver uma pessoa com deficiência superar-se, da mesma forma que me toca ver um velhinho de 80 anos a dar uma corrida matinal. Agora, há uma escolha latente no meio disto tudo: continuamos a “comover-nos” com falsas conquistas das pessoas com deficiência ou damos-lhes as ferramentas para que a sua autonomia nos permita agir com uma certa, e salutar, indiferença?

      Abraço

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