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Artigo de Opinião

Ilustre estátua de Camilo

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Imagem: Arquivo Pessoal

Pois bem, estamos em meados de setembro de 2023, século XXI. O sol prevalece, mesmo o verão tendo já feito as malas. As toalhas de praia, os chapéus e o protetor solar, a moleza e os grãos de areia espalhados por toda a parte foram já substituídos por cadernos, livros e pressas, despertadores que ecoam furiosamente às seis da matina de uma segunda-feira.

Nesta algazarra de recomeço, surge um pouco por toda a comunicação social uma notícia que, inicialmente, acreditei seriamente tratar-se de uma sátira vinda diretamente do Inimigo Público. Qual espanto não foi o meu, assim como o de qualquer portuense, em saber que a conhecida estátua de Camilo Castelo Branco iria ser retirada da via pública. “Mas, porquê?” perguntei-me inicialmente, bastante confusa e inquieta. Ao que parece, trinta e sete signatários deram o nome numa petição pública, defendendo que a escultura de Camilo, erguida em honra do centenário da obra Amor de Perdição, era, na verdade, uma peça de mau gosto, ao persuadir a uma interpretação imoral e objetificada da figura de Ana Plácido, companheira do escritor.

O Porto é, realmente, uma cidade com bastantes problemas. Porém, nenhum deles se equipara às trágicas nádegas de uma escultura de bronze (perdoem-me se estiver errada, mas a minha ignorância relativamente a materiais de escultura é evidente). “Estes seios, cobertos de dejetos aviários, provocam em mim uma excitação revoltante! Não deveria ser permitido ter exposto, em plena via pública, tal figura erótica, com tais toques contemporâneos da natureza carnal”. Imagino isto como um possível diálogo de qualquer uma das trinta e sete pessoas que decidiram criar uma petição para aniquilar tal obra de arte horrorosamente inquietante.

Se calhar, estes trinta e sete indivíduos seriam os primeiros a defender que, as esculturas vandalizadas e derrubadas nos Estados Unidos, em protestos antirracistas, foram brutalmente injustiçadas. Aliás, talvez estes indivíduos, ao ouvirem referências ao caráter imperialista, autoritário e invasor que o Padrão dos Descobrimentos poderá representar, repostem de uma forma agressiva e revoltada, afirmando que tal marco histórico não deve ser injuriado com tais rótulos.

“Em termos estéticos, a estátua não é propriamente uma coisa bonita. Não tem nada a ver com liberdade artística, todos nós temos a liberdade artística de fazer aquilo que quisermos… liberdade artística também é por e tirar, não é propriamente apenas pôr” diz Rui Moreira, em entrevista à RTP. Agradecer, desde já, ao autarca pelas subtis palavras.

Ora, senhor Presidente da Câmara Municipal do Porto, realmente, é fantástico “tirar” a alma dos portuenses, e “pô-la” em formato de hotéis de luxo. É louvável “tirar” moradores das casas onde viveram uma vida, e “pô-los” em bairros camarários. Para Rui Moreira, “tirar” o Zé Povinho, e “pôr” investidores estrangeiros é o mais acertado a fazer, numa cidade onde, a cada dia, se perde mais um pouco da beleza e da alma que sempre exibiu. De pouco serve aos portuenses um autarca crítico de arte, que ocupe os seus dias a ler cartas de amigos que acham que um traseiro destapado é um motivo de escândalo e agitação social.

Em contrapartida, o escultor da obra, Francisco Simões, afirma, também entrevistado pela RTP, que a mulher desnuda não representa Ana Plácido, mas sim a figura feminina romântica, que Camilo descreve ao longo da obra Amor de Perdição: “Representa simbolicamente todas as mulheres do Amor de Perdição”.

De facto, estamos a falar de Camilo Castelo Branco, um romântico (a não confundir com um tal José do mesmo apelido), um autor de obras que marcaram a literatura portuguesa de forma inigualável. O seu ultrarromantismo persegue estudantes preguiçosos e encanta leitores apaixonados. “(…) amou, perdeu-se e morreu amando”. Esta expressão, que constrói a fatal vida de Teresa e Simão na obra Amor de Perdição, serve como mote inicial para reflexões infindáveis sobre a existência humana, sobre a necessidade inerente ao ser de amar, de ser amado, de procurar paixões intensas, algumas indiscretas, outras talvez fatais.

A arte constrói a vida de quem abre o coração a palavras emotivas, a pinceladas coloridas, a figuras talhadas e moldadas. A arte abre as portas do artista que entendeu representar uma figura literária de uma determinada forma, ligeiramente arrojada. A arte vê-se nas ruas, nas galerias, e não em memórias enclausuradas por minorias púdicas, ofendidas e reivindicativas de vontades individualistas, por figuras políticas tendenciosas e iliberais.

Talvez, aquando da publicação deste artigo, já o caso tenha tido um desenvolvimento tal complexo que se tenha o conhecimento de que a estátua provocadora será substituída pela figura de um falo, onde veias fortemente vincadas irão homenagear cada um dos trinta e sete justiceiros.

Sugiro até que, caso a estátua se mantenha intacta, se faça proliferar pelas ruas portuenses uma lenda urbana: se um indivíduo se dirigir à escultura, numa última quinta-feira de cada mês e esfregar a nádega esquerda da donzela desnuda, a figura de Valentim Loureiro aparecerá nos sonhos do feliz abençoado, segredando que a verdadeira localização do Santo Graal é, na verdade, no subsolo da Junta da união de freguesias de Gondomar, Valbom e Jovim.

Artigo da autoria de Rita Vila Real

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