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Opinião

Ricardo Salgado, o doentinho

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Imagem: Telemedicina Morsch

Numa nublada terça-feira de dezembro, via-me a participar numa espera coletiva, e extremamente entediante, pelo chamamento, quase divino, do número da minha senha, no centro de saúde da minha pequena cidade.

Enquanto aguardava pelo robótico anúncio, o meu olhar navegava num cruel “scroll” pelos eternos lençóis de uma rede social. Até que, a certo momento, o meu olhar poisou numa notícia que despertou, inevitavelmente, a minha curiosidade imediata. “Salgado já se perdeu na rua, saiu de pijama, confunde a irmã com a prima e não sabe bem o que se passa em Gaza. Conheça o estado atual do ex-líder do BES”.

Qual não foi a minha reação a este título, senão pena. Esta repugnante notícia do ECO/Advocatus discorre, ao longo de treze parágrafos, o estado de Ricardo Salgado face à doença de Alzheimer, diagnóstico confirmado por uma equipa do Instituto Nacional de Medicina Legal. “Salgado deixou de conduzir há cerca de dois anos, já se perdeu na rua, não tendo conseguido informar por telefone onde estava, pelo que deixou de sair sozinho de casa há um ano. Dentro da sua residência habitual orienta-se, mas em casa de férias precisa várias vezes de ajuda. Deixou de tomar conta do dinheiro e das contas da casa, gerindo unicamente pequenas somas.” Lê-se, nesta total diarreia de “informação”, que se assemelha a um típico texto de revista cor-de-rosa.

Isto não é informar, é pura e simplesmente coscuvilhar. Faltava apenas descrever minuciosamente a forma como Salgado se vê impossibilitado de limpar o próprio rabo, face a um incidente que aconteceu há um ano e cinco meses no Cascais Shopping, depois de uma ida ao KFC, em que comeu cinco asas de frango picantes, olvidando a sua intolerância ao picante da cadeia de fast-food.

É totalmente inadmissível um órgão de comunicação social expor de uma forma tão descarada a intimidade de um indivíduo doente. Apesar dos processos em que está envolvido, não deixa de ser uma pessoa portadora de uma doença neurodegenerativa irreversível, uma condição extremamente deprimente e incapacitante.

A posição notoriamente punitiva do artigo faz jus a muitas opiniões que se leem nas redes sociais, inferindo que Salgado está a forjar a doença de forma a escapar da justiça, ou até que, mesmo tendo Alzheimer, deveria ser julgado e preso. A veia justiceira da opinião pública deixa-se ridicularizar, entrelaçando a sua mão às teorias da conspiração de que a terra é plana, e que o Michael Jackson ainda está vivo. Deixemo-nos de histórias mirabolantes! Para todos os efeitos, se sofre da doença de Alzheimer, não merece ser exposto e humilhado publicamente.

Não existe pior prisão do que o esquecimento, do que a perda gradual da identidade de um indivíduo. Não há mais vil castigo do que perder a alma para um corpo impotente, fraco e irracional. Não se encontra mais cruel sentença do que regressar a uma infância sem retorno, onde é apenas garantida a perda de mais um pouco de si, mais um pouco de controlo até chegar ao incontornável destino do ser humano.

Artigo da autoria de Rita Vila Real

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