Crítica
Beirut: Quando a Melancolia Aprende a Dançar
Entre tantas bandas que me acompanharam ao longo dos anos, poucas permaneceram como faróis na memória. Depois do Beach House — essa névoa luminosa de sonhos e guitarras —, o Beirut ocupa o segundo lugar no meu altar particular. Há algo na música de Zach Condon que me alcança sempre que o mundo parece distante demais: um eco de melancolia que não entristece, uma sensação de viagem sem partida nem chegada. Beirut é essa trilha invisível que me devolve o gosto do tempo, como quem acende um incenso e observa a fumaça dançar.
Se incenso fosse música… a fumaça que se espalha no ar teria o cheiro doce do Beirut. Há algo de espiritual — mas não religioso — no modo como as canções de Zach Condon ocupam o espaço, dissolvendo o tempo em melodia e memória. A cada nota, a cada sopro, parece possível tocar um lugar que nunca existiu, um mapa imaginário feito de trompetes e acordes de ukulele. Beirut não se escuta apenas: habita-se.
Zach Condon nasceu em Santa Fé, Novo México, em 1986 — um território seco, de horizontes vastos, que talvez explique o desejo de deslocamento que permeia toda a sua obra. Adolescente inquieto, viajou pela Europa aos dezesseis anos e, entre vielas balcânicas e tavernas cheias de metais, encontrou o som que o marcaria para sempre. Quando voltou aos Estados Unidos, Beirut já existia: uma orquestra portátil, um corpo sonoro feito de sopros e saudades.
O primeiro álbum, Gulag Orkestar (2006), é quase um diário de viagem. Há nele o frescor de quem descobre o mundo com uma câmara e um caderno de anotações — e o registro é musical. Trompetes e acordeões substituem palavras, e cada faixa parece narrar um instante de exílio voluntário. No ano seguinte, The Flying Club Cup ampliou o horizonte com arranjos mais complexos e um espírito quase parisiense, inspirado pela chanson e pela melancolia europeia. Já em The Rip Tide (2011), Beirut pousa o olhar sobre si mesmo: o som se torna mais íntimo, menos nômade, como se Condon começasse a compreender que também é possível viajar sem sair do lugar. Já no álbum No No No (2015), Condon traz uma musicalidade mais “dançante”, instrumentalmente falando.
Beirut: O Som Como Geografia Afetiva
Tecnicamente, a sonoridade de Beirut se sustenta sobre um casamento improvável entre tradição e invenção. As linhas de metais — trompete, bombardino, flugelhorn — não cumprem a função de enfeite, mas de voz. São melodias paralelas que respiram junto à voz grave e cálida de Condon, criando uma polifonia humana. O uso de instrumentos analógicos, gravados em camadas densas, produz uma textura quase física: escutar Beirut é sentir o ar vibrar. A bateria raramente ocupa o centro; o pulso vem do sopro, do acordeão, da forma como as notas se empilham e desabam em compassos irregulares.
Mas o encanto do Beirut nunca foi apenas técnico. Há uma poética da distância, um desejo de pertencer a algo que já se perdeu. Em “Elephant Gun”, talvez o seu maior êxito, cada explosão de metais soa como um grito contido entre a alegria e o lamento — a banda inteira parece celebrar e chorar ao mesmo tempo. Não é à toa que a canção virou trilha da microssérie Capitu (2008), da Rede Globo: a melancolia de Condon dialogava com a de Bentinho, ambos condenados a amar demais.
Depois de anos de estrada e um público crescente, veio o silêncio. Problemas de saúde, ansiedade e uma voz ferida forçaram Condon a interromper as turnês em 2019 (Gallipoli). Por um tempo, parecia que Beirut se perderia no próprio eco. Mas o que poderia ser fim virou recolhimento. Em 2023, Zach reapareceu com Hadsel, um álbum gravado na Noruega, entre o frio e o isolamento. Longe das cidades e da pressão dos palcos, ele encontrou refúgio num órgão de igreja, redescobrindo o espaço como instrumento.
Silêncios e ressurgimentos
Hadsel soa como se o gelo respirasse. As melodias são lentas, o ritmo quase ausente. Condon gravou boa parte do disco sozinho, utilizando sintetizadores antigos, órgãos e gravações de campo — ruídos de vento, passos, o ranger da madeira. O resultado é uma espécie de folk glacial, em que o silêncio tem peso e as frequências baixas abraçam o ouvinte. Se antes o Beirut era o som da viagem, aqui ele se torna o som do retorno.
Dois anos depois, em 2025, A Study of Losses confirmou o novo rumo. O disco nasceu de uma colaboração com a companhia de circo sueca Kompani Giraff e foi inspirado no livro Verzeichnis einiger Verluste (Inventário de Algumas Perdas), de Judith Schalansky. O título é revelador: Condon transforma o luto em forma. São dezoito faixas que exploram o conceito de ausência, com arranjos mais experimentais — percussões tímidas, pianos preparados, sintetizadores modulares — e um trabalho meticuloso de espacialização sonora. O ouvinte é colocado dentro de uma catedral acústica: cada eco tem um lugar e uma intenção.
A Técnica e o Espírito
Do ponto de vista técnico, Beirut amadureceu em direção à arquitetura sonora. Se nos primeiros álbuns o foco era a exuberância instrumental, nos mais recentes Condon trabalha a contenção. O som respira. As gravações em Hadsel e A Study of Losses mostram uma atenção minuciosa à dinâmica: a alternância entre camadas densas e o vazio; a escolha de frequências que se cruzam sem se sobrepor; o uso do reverb não como efeito, mas como extensão do instrumento. O resultado é uma música que se expande no espaço, convidando o silêncio a fazer parte da composição.
Há também uma dimensão quase cinematográfica nesse trabalho. Condon parece compor com a câmera em mente: os temas abrem como planos-sequência, deslocam-se como panorâmicas. O timbre do flugelhorn, quente e ligeiramente rouco, atua como narrador. O ukulele, antes uma solução improvisada (quando ele lesionou o pulso e não podia tocar guitarra), converteu-se num gesto de assinatura — o pequeno instrumento de cordas que conduz orquestras inteiras.
Bloco do Eu Sozinho
Mais do que um compositor, Zach Condon tornou-se um arquiteto de atmosferas. Cada faixa é um espaço habitável, uma casa que se ergue sobre ecos e memórias. É possível identificar nesse percurso uma lógica quase geográfica: Beirut parte do mundo (os Balcãs, Paris, México) para chegar ao íntimo (a Noruega, o quarto, o silêncio). A viagem agora é interior, e a melancolia, que antes se derramava em fanfarras, torna-se uma bruma fina que cobre tudo.
Escutar Beirut em 2025 é experimentar a maturidade da solidão. Condon já não precisa provar sua capacidade de criar canções belas — ele busca compreender o que faz uma canção permanecer. E talvez seja isso que o distingue: a consciência de que a beleza não está na explosão, mas na reverberação. O som doce que fica no ar depois que a música termina.
Como o incenso que queima devagar, Beirut se consome em delicadeza. O que antes era festa agora é contemplação. E, ainda assim, há prazer nesse recolhimento. O ouvinte que acende Beirut em sua estante — como quem acende um perfume antigo — encontrará não apenas uma trilha sonora, mas um estado de espírito. A fumaça que sobe é música. E o ar, por um instante, parece mais leve.
Texto da Autoria de Ícaro Machado