Crónica
O Vidro Como Espelho da Nossa Consciência
Há algo de poético no vidro. Transparente, frágil, mas eterno. Pode renascer infinitas vezes sem perder a sua essência. É um material que desafia o tempo e o desperdício, um exemplo perfeito daquilo que a economia circular sonha ser. Ainda assim, continuamos a deixá-lo morrer em aterros, como se não víssemos o reflexo da nossa própria inconsciência nele.
Em teoria, o vidro é o herói silencioso da sustentabilidade. Cem por cento reciclável, infinitamente reaproveitável, e ainda assim tão subvalorizado. Em Portugal, apenas cerca de 57,8% das embalagens de vidro são recicladas, segundo os dados do presente ano. Longe da meta europeia de 70% e muito mais distante dos 90% previstos para 2030.
É como se tivéssemos nas mãos um diamante e insistíssemos em tratá-lo como cascalho.
Grande parte do problema não está na tecnologia, mas nas nossas rotinas. Separar o lixo é, para muitos, um gesto automático, mas será um gesto consciente? Quantas vezes atiramos para o ecoponto verde algo que “parece vidro”, mas não é? Uma tampa, um frasco com restos de verniz, uma garrafa ainda meio suja.
Pequenas distrações que comprometem toneladas de material que poderia ter uma nova vida. A reciclagem é, afinal, uma questão de cultura, e o design pode ser o seu melhor professor.
O design, tantas vezes associado apenas à estética, tem um papel estratégico neste ciclo. É no desenho de uma garrafa, no rótulo que se descola com facilidade, no formato que se empilha sem desperdício, que começa a circularidade. O designer é o mediador entre o objeto e o planeta: aquele que decide se o produto vai ter uma segunda vida ou se vai nascer condenado ao esquecimento. Donald Norman já o declarava: muitos produtos são concebidos para morrer depressa, vítimas de uma obsolescência planeada. Mas o vidro, esse, recusa-se a morrer.
Em países como a Alemanha, o sistema de depósito reembolsável faz maravilhas. Devolve-se a garrafa, recebe-se uma pequena quantia, e o ciclo recomeça. É simples, eficaz e educativo. O consumidor sente-se parte de algo maior. Em Portugal, essa prática ainda engatinha, mas há sinais de mudança.
Projetos como o da Sociedade Ponto Verde com a Maltha Glass Recycling e a Resitejo mostram que há vontade e inovação para recuperar até o vidro contaminado. É um passo promissor, um sinal de que o país começa a olhar o vidro não como resíduo, mas como recurso.
Mas o verdadeiro salto virá quando deixarmos de pensar em reciclar e começarmos a pensar em reutilizar. Quando percebermos que o design pode dar uma segunda vida à mesma garrafa, transformando-a num copo, num vaso, numa peça de arte. Projetos como Revive Bottles, em Aveiro, ou Jardin Verre, em Marselha, mostram-nos o caminho: o do upcycling, da imaginação posta ao serviço da sustentabilidade.
É bonito ver como uma garrafa de gin pode tornar-se num copo elegante, ou como o vidro de uma vela pode renascer em forma de flor. O desperdício, afinal, é só uma ideia mal desenhada.
O futuro do vidro, e, talvez, do planeta, depende desta união entre tecnologia, política e design. Fornos elétricos, garrafas ultraleves, novos materiais que se fundem a temperaturas mais baixas, são avanços notáveis. Mas nada disso valerá se o consumidor continuar desligado, se o designer continuar a criar sem pensar no “fim de vida” do seu produto.
No fundo, o vidro é um espelho. O que fazemos com ele reflete quem somos enquanto sociedade. Quando o deixamos quebrar-se sem destino, mostramos o nosso desleixo. Quando o recolhemos, limpamos e reinventamos, mostramos a nossa esperança.
E talvez um dia, quando olharmos para uma simples garrafa, vejamos mais do que um recipiente vazio, vejamos um ciclo infinito de possibilidades. Porque, tal como o vidro, o futuro também pode ser transparente, se soubermos cuidar dele.
Texto da Autoria de Catarina Silva
