Crítica
Boots: Manual de Como Ser Macho
Conflitos de identidade, mãe solteira, racismo e relações violentas entre pai e filho. Boots é aquele drama ótimo para ver depois do trabalho, antes de dormir. Com um roteiro até interessante, a nova produção da Netflix não é de tirar o fôlego, mas promete colocar muita gente na linha.
Se você está esperando mais um romance fofinho com problemáticas do ensino médio — que, por sinal, está em alta novamente —, volte para o catálogo e assista Heartstopper (Netflix). Boots é uma série “brutalista” de uma forma, digamos, mais tolerável. A nova aposta da Netflix traz um drama LGBTQIAP+ sem glamour e purpurina: estamos cansados de enredos dançantes e tristeza deprimentes. Queremos entretenimento que mexe com a nossa cabeça sem que alguém tenha que morrer no final.
Fatos reais. Boa parte do enredo de Boots (Netlifx) é baseada na obra The Pink Marine (2016), que relata a experiência de Greg Cope White durante o tempo em que serviu às Forças Armadas dos Estados Unidos, em 1979 — 15 anos antes de o lema “Don’t Ask, Don’t Tell” (“Não pergunte, não conte”) ser adotado como a política oficial do serviço militar em relação à homossexualidade.
No período retratado pelo autor em sua obra literária, ser gay ainda era considerado ilegal dentro do exército americano. E a nova produção da queridinha dos streamers traz exatamente essa trama com argumento principal em Boots: um homem gay que decide “matar” a sua identidade utilizando a dureza e os treinamentos pesados dos fuzileiros para aprender a se tornar um “homem de verdade”.
Com oito episódios, a adaptação televisiva Boots se passa em 1990, onze anos depois do período real narrado no livro. Na obra original, White conta que o motivo que o levou a deixar os Fuzileiros Navais — após seis anos de serviços prestados — foi o desgaste emocional de ter que mentir constantemente sobre sua identidade, um conflito também vivenciado pelo protagonista na série: “O Corpo de Fuzileiros Navais é um lugar para encontrar seu verdadeiro eu […] Mas eu não podia ser meu eu verdadeiro e não conseguia continuar sendo falso com as pessoas que eu tanto admirava e respeitava”, revelou o ex-fuzileiro em entrevistas.
Boots ocupa atualmente o quinto lugar entre as séries mais assistidas da Netflix, consolidando-se como um grande sucesso de público e crítica, com 93% de aprovação no Rotten Tomatoes. Misturando drama e comédia, a produção acompanha Cameron Cope (Miles Heizer), um adolescente gay não assumido que, após anos de bullying na escola, decide se alistar impulsivamente ao Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA junto do melhor amigo hétero, Ray (Liam Oh).
America Has The Problem
Todos precisamos de uma missão. No decorrer dos episódios, somos apresentadas às dinâmicas de relações entre os recrutas e seus familiares. As motivações que os trouxeram ali e as suas perspectivas com a formação. Chega a ser desconfortável assistir à forma como os recrutas são tratados por seus superiores, estabelecendo uma ordem imaginada viril ao criar um ambiente hostil cujo objetivo é criar homens de honra para defender o país dele mesmo — e dos inimigos que os EUA imaginam para validar tais violências.
Máquinas de guerra. Desde o século XIX, com a Doutrina Monroe e o lema “América para os americanos”, os Estados Unidos constroem a sua identidade a partir de uma lógica de dominação que combina o mito da liberdade com a sistematização da violência. O país, surgido de um processo colonial, consolidou-se sobre o ideal da meritocracia, transformando desigualdades históricas em narrativas de sucesso individual. A promessa do “sonho americano” serve, assim, como uma cortina ideológica que oculta as profundas contradições internas: o racismo estrutural, a desigualdade social e o culto à propriedade privada como extensão da própria cidadania.
Por trás da retórica da liberdade e da glória nacional, os Estados Unidos projetam uma cultura de violência legitimada, onde o patriotismo e a defesa da nação se tornam justificativas para a criação de “homens de honra” — soldados, heróis e cidadãos armados. Essa cultura, reforçada por um capitalismo voraz e pela indústria do entretenimento, transforma a guerra, o lucro e o espetáculo em pilares simbólicos da identidade americana. Assim, o amor à pátria se confunde com o direito à violência, e a promessa de prosperidade individual perpetua um sistema global que coloca os EUA no centro do mundo — não pela paz, mas pelo poder.
GGG: O Homen Gay No Centro do Mundo
O Sargento Robert Sullivan (Max Parker) é aquele personagem volátil que você ama e odeia muitas vezes antes do fim. Após uma situação violenta já no primeiro episódio — afeto que não falta nessa produção —, Sullivan aparece para assumir o pelotão. A dinâmica entre a figura de poder do sargento e a subordinação de Cameron revela as tensões escondidas por trás dos personagens, que se mostram vulneráveis à medida em que tentam silenciar quem realmente são.
O ponto-chave é quando descobrimos que Sullivan — a gay padrão normativa — tem a sua carreira ameaçada por investigações a respeito de sua sexualidade. Os flashbacks que surgem entre cada episódio mostram o desenvolver paralelo dessa narrativa ao delimitar como o sargento lutou contra si mesmo para se entender enquanto “o melhor dos meninos”, se distanciando de qualquer evidência de sua homossexualidade.
Como homem gay, consigo perceber — e até mesmo entender — as relações de conflito enfrentadas por Sullivan. Ao projetar suas frustrações e medos em Cameron, somos apresentados a um programa de fuzileiro que mais parece um tratamento de conversão. No decorrer desse programa de honra, os personagens aprendem a redefinir as suas identidades ao ganhar virilidade que se estabelece numa masculinidade tóxica que reprime toda e qualquer emoção. Sutilmente, somos apresentados as dinâmicas dessas instituições.
Destaque para a autorreflexão estabelecida entre Cameron (ego) e seu Id. A forma como os roteiristas decidiram externalizar esses conflitos, trazendo-os para o campo visual das “interpelações” e diálogos reais entre o ego e o id, é psicanálise pura! É como se pudéssemos acompanhar processos psíquicos de condensação, sublimação e recalcamento na tela.
Boots: Criados Para Não Amar
Serviço, sigilo e repressão. A vida de Cameron muda com a chegada de Jones (Jack Kay). O novo recruta do Corpo de Fuzileiros Navais forma um relacionamento próximo com Cope depois que eles se tornam companheiros de beliche após a partida de Ochoa (Johnathan Nieves). Entre confidências, ambos revelam o que os aproxima em segredo. O reconhecimento de Cameron deixa-o confortável. Mas não por muito tempo…
Quando sargento Sullivan coloca os dois para disputar numa luta corporal, quem é mais macho — Spoiler! É uma das cenas mais simbólicas, na minha opinião. O embate, que deveria provar força, acaba expondo fragilidade: um alerta doloroso sobre como homens gays continuam a se violentar uns aos outros ao reproduzir hierarquias e subgrupos dentro da própria comunidade.
Nos episódios finais — que ainda trazem muitas surpresas e momentos emocionantes, não apenas para o Cameron — só consegui lembrar a célebre frase gravada no túmulo de Leonard Matlovich —“Quando eu estava no exército, eles me deram uma medalha por matar dois homens e uma dispensa por amar um” — que ressurge como um eco simbólico na cultura contemporânea, aparecendo também na obra Ame e dê vexame (1990), do psiquiatra brasileiro Roberto Freire, como síntese das contradições entre o amor e a norma(tividade) social.
A frase, que denuncia a hipocrisia de uma sociedade que glorifica a violência enquanto pune o afeto, encontra ressonância na série Boots (Netflix) — e em tantas outras situações cotidianas de homens gays. Em ambos os contextos — o livro e a série — o que se evidencia é o confronto entre o corpo que ama e o corpo que serve, entre a obediência e o desejo, revelando o quanto a cultura americana ainda estrutura sua identidade sobre a repressão e a violência legitimada.
A Primeira Batalha é Ser
Como numa fábula contemporânea, a metáfora surge exatamente dessa performance de masculinidade atrelada ao patriotismo americano que é tensionada a partir de fissuras sobre honra e sucesso, revelando o quanto a cultura americana ainda estrutura sua identidade sobre a repressão e a violência legitimada que se estabelecem numa sociedade do desempenho (HAN).
Entre fardas, disciplina e silêncios, Boots (Netflix) mergulha nas contradições da masculinidade americana. Inspirada em fatos reais, a série transforma o quartel em um laboratório de identidade, onde o corpo serve antes de sentir. Longe das narrativas românticas do universo LGBTQIAP+, o que se revela é um campo de batalha interior. A guerra, aqui, é contra o desejo. E a vitória, se existe, nasce do reconhecimento da própria fragilidade.
Boots não é apenas sobre fuzileiros — é sobre os corpos que aprendem a sobreviver ao amor em meio às trincheiras da masculinidade.
Texto da Autoria de Ícaro Machado