Artigo de Opinião
SOMOS TRADIÇÃO: VIVA A MATANÇA
Quão legítimo é continuar a fazer algo com base no pressuposto de que é tradição? Quão incensurável é matar animais numa arena, ao badalo dos aplausos do público e do sangue frio dos toureiros, apenas porque já os seus avós faziam isso? A passagem de uma tradição continua a ser desculpa num século XXI dito “dos livres”, em que a “liberdade” é cabeça de cartaz de cada constituição. A pena de morte também foi tradição. Deverá alguém retomar essa prática? Se calhar também perdemos um bocado da nossa identidade quando aboliram a escravatura…
Ressalva-se a ironia do “quem não gosta, não veja”. O meu vizinho bate na mulher. Segundo a lógica do aficionados, eu vou apenas ignorar e “não ver”, porque “não gosto”.
Contudo, mesmo que quisesse afastar-me do assunto, a televisão nacional faz questão de garantir que isso não acontece, orgulhando-se da cobertura privilegiada desta “tradição artística”. No intervalo de tempo entre o fim de um programa de talentos e o início de mais uma Casa dos Segredos, vão-se enchendo chouriços na arena, publicitados com pompa e circunstância. Enaltece-se o luxo do roupeiro dos toureiros, o imenso porte dos touros e a agilidade dos forcados, num elogio à cultura e à bandeira portuguesa. Prezemos o facto de termos espaço para o sangue no símbolo nacional, porque este continua a ser derramado.
Na verdade, na semana em que entrou em vigor a lei que criminaliza o abandono e os maus tratos animais, a estação pública de televisão optou pela exibição de uma noite de tourada. Não vá uma pessoa pensar que a lei é aplicável a todos os animais … (o CDS fez questão de frisar que não). Por isso, vemos um país orgulhoso de não criminalizar maus tratos a animais usados para “exploração” e “fins de espetáculo comercial”.
Em Portugal, apenas Viana do Castelo se declarou, em dezembro de 2008, cidade anti touradas. São vários os movimentos que pedem a legislação de um “basta!”, mas vivemos num país em que a “tradição” é rainha e ir contra o Zé Povinho nestas questões é atirar um santo do altar.
A minha esperança renasceu quando dei de caras com um imenso movimento anti touradas de “nuestros hermanos”. Em Saragoça, por alturas das Festas do Pilar, os próximos donos da tradição tourina encheram as ruas da cidade, recebidos de braços abertos num apelo à “festa sem sangue”. Têm-se multiplicado em Espanha as manifestações dando alento à discussão pública e tornando mais nítida a miragem de ver uma lei chegar a ser assinada.
Mas enquanto esse dia não seja, somos feliz no nosso mundinho tradicional e aconchegado, em que animais com direitos são só alguns, ferida não doi em todos e matar é um espetáculo que se aplaude de pé.
antonio
7 Out 2014 at 14:34
Perfeitamente de acordo com o artigo. A civilidade é humana, mas não parece.
David Guimarães
8 Out 2014 at 11:04
Tem razão a Margarida!
O Homem arranja sempre um sistema de crenças que legitime o injustificável. Foi assim com a maior abjecção da História a Shoah. As touradas seguem essa lógica humana de justificação do dantesco com idiotices legitimadoras como ” o touro não sofre”, ” foi toda a vida excelentemente bem tratado e preparado para a arena” e como se falou no texto, a apelação da “sacrosanta” tradição.
Margarida nós não somos anti touradas, as touradas é que são incompatíveis com os nossos princípios humanistas. Tem em mim um aliado no combate à crueldade.
Cumprimentos calorosos!
Juliano Mattos
16 Out 2014 at 0:33
E há organizações de estudantes que organizam touradas e garraiadas durante o período da Queima das Fitas. Vergonha!