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Artigo de Opinião

CULPEM O JORNALISMO.

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Deixem-me começar por dizer que este texto me vai custar. A escrever, a pensar, a vê- lo ser publicado e lido. Não é fácil atacarmos aquilo que defendemos, aquilo em que acreditamos. Mas, de vez em quando, é necessário.

Desabafos à parte, esta tem sido uma semana politicamente interessante e dolorosa ao mesmo tempo. Por Portugal, Costa, Martins e Sousa combatem avidamente contra Portas e Coelho que lá vão respondendo quando podem e como podem. Pretendo alongar-me mais sobre isto, mas não aqui (neste texto), nem hoje.

O assunto de hoje tem sido assunto desde sexta-feira à noite. Paris. 129 mortos. Paris. Terroristas. Paris. Atentados. Estado Islâmico. Medo, violência e terror. E pronto, acabei de vos dar o resumo mais sintético sobre a janela mediática da última semana. Em todos os media, em toda a Europa, todos falam disto. E isso é bom. É sinal que a imprensa europeia (e mundial) se preocupa, reflete os sentimentos de solidariedade que a sociedade em geral demonstrou perante o sofrimento dos parisienses.

Até aqui, tudo estaria bem. Falemos agora do que está mal. Durante a última semana, tenho visto atrocidades nos media, nacionais e estrangeiros, em torno deste tema. Desde o circo mediático que se montou, desde logo, por jornais como o Correio da Manhã, à descoberta fatídica e consequente sobreexploração do facto de que um dos alegados terroristas era lusodescendente. Do Washington Post que avança informações que ninguém mais corrobora sobre Abdelhamid Abaaoud, nem sequer as autoridades francesas, mas que segundo o jornal vêm de fontes anónimas nas autoridades francesas. Da triste figura, à falta de melhor, de dois repórteres da CNN numa entrevista com um professor universitário (podem conferir: https://www.youtube.com/watch?v=PzusSqcotDw).

É precisamente sobre este último exemplo que me irei debruçar, por ser bem representativo da realidade mediática que nos tem sido dada a conhecer nos últimos dias. Há uma mediocridade tão grande e tão generalizada nos media ocidentais (uso o termo de forma alargada e demasiado abrangente claro) que me faz pensar realmente se o jornalismo do século XXI ainda se preocupa com a verdade. São sempre, uma vez e outra, as mesmas imagens, repisadas e repassadas dos atentados. É sempre o mesmo discurso típico e francamente mau de como eles são os terroristas e nós os mártires. Sempre o mesmo framing, sempre a mesma ideia. Contra-factos? Cruzamento de informações? Background histórico? Zero.

Falamos aqui de um jornalismo não só deficiente, mas falacioso. Que apenas dá voz a uma corrente de pensamento, a uma ideologia social e política dominante. A de que nós, europeus, somos de algum modo superiores. E a de que eles, e destaquemos bem os termos aplicados a eles, são islâmicos, muçulmanos e terroristas. Alguém ainda acredita neste discurso enviesado? Mas os jornalistas não questionam esta retórica propagandística e falsa? Inacreditável.

Enquanto isso, enquanto tudo isto é publicado, sem controlo ou rigor, cultivamos o ódio. Se realmente aceitarmos essa ideia de que os “terroristas” do Estado Islâmico querem fazer-nos viver no medo, está numa altura de abrirmos os olhos e percebermos que os nossos media e os nossos políticos em geral querem fazer-nos viver com ódio. Somos informados de forma a cultivar a animosidade para com estes indivíduos. Não contra os atos que eles cometem mas contra eles. Somos todos os dias alimentados por discursos pouco ou nada imparciais, que encontram um eco profundamente assustador na sociedade.

Não acreditam? Em que sociedade tão civilizada e evoluída se justifica a necessidade de um grupo de pessoas (que se caracterizam por, entre um miríade de outras coisas, serem praticantes do Islamismo), realizarem um vídeo e colocarem-no numa plataforma pública, no qual reafirmam com todo o seu fervor que são muçulmanos mas não são terroristas? Mas como chegámos nós, tão evoluídos, ao ponto de aceitar que esta mensagem é necessária e normal? Alguém ainda acredita que ser muçulmano é igual a ser um assassino? Aparentemente sim.

Mas analisemos mais a fundo. Porque chamámos terroristas ao Estado Islâmico? Porque eles nos atacam? Porque os ataques deles provocam terror? Assumindo que sim, que a resposta se encontra algures nestas ideias, porque não chamamos terrorista a Barack Obama? A George W. Bush? A François Hollande? Aos soldados americanos, franceses e outros demais que bombardearam países como a Síria, o Afeganistão e o Iraque? Cujos ataques provocaram o terror nas populações desses países. Porque não são eles também terroristas?

Apenas como termo de comparação, os ataques ao World Trade Center (há quase 15 anos atrás) vitimaram cerca de 3000 pessoas. A campanha militar dos americanos no Afeganistão vitimou para cima de 15000. É, tão só e apenas, 5 vezes mais. Mas eles são os terroristas. E nós somos o quê?

Este discurso mediático é dado todos os dias à nossa sociedade. Entra pelas nossas casas ao almoço e ao jantar, tão mastigado, tão cego e enviesado. E nós vemo-lo, ouvimo-lo e aceitámos! Aceitámos que o jornalismo nos mostre o mundo como quer e, paralelamente, não o mostre como é. Aceitámos conhecer apenas uma parte da verdade e não exigimos a outra. Aceitámos esta visão que nos apresenta duas pessoas e duas medidas, conforme o sítio do globo onde nos encontrámos.

Não deixem nunca de culpar alguém que é responsável pela morte de 129 pessoas. Isso jamais poderá ou deverá ser perdoável. O que não pode ser aceite é que uns sejam assassinos e os outros sejam justiceiros. O que não podemos ter é dois conceitos para a mesma ação. Dois juízos, dois valores. O que não podemos é permitir este tipo de jornalismo que envenena a sociedade e destrói a verdade.

É com pesar que fecho este texto e é com pesar que afirmo: esta semana, o próprio jornalismo foi uma forma de terrorismo.

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