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Cultura

500 anos de Camões (e de Português)

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A minha mãe chama-se Natércia. Na escola, era sempre uma gargalhada quando eu dizia o seu nome tão invulgar, tão esdrúxulo, e, por isso, tão difícil de se dizer, quanto mais de rimar, nos poemas do dia da mãe. Só encontrei essa rima uns anos mais tarde, na primeira lei de Newton, também conhecida como lei da inércia.

Natércia é uma palavra inventada por Camões para o poema Pouco te Ama, sob a forma de anagrama, isto é, um novo baralhar das letras constituintes de uma palavra, para dissimular a verdadeira. Pensa-se que, a certa altura, Camões estaria apaixonado por uma dama da corte portuguesa, Caterina, que não correspondia o seu amor. Poemas como Alma minha gentil, que te partiste seriam dedicados a esta mulher.

Quando Liso Pastor, num campo verde,
Natércia, crua Ninfa, só buscava
Com mil suspiros tristes que derrama.

Porque te vás de quem por ti se perde,
Para quem pouco te ama? (suspirava)
E o eco lhe responde: Pouco te ama.

Perante isto, afigura-se-me impossível falar a língua que falo sem levar Camões nas palavras. O poeta classicista esteve ativo no Renascimento, que coincidiu, em Portugal, com a era dos Descobrimentos, especulando-se que tenha nascido em 1524. Porém, não se sabendo o dia em que isso aconteceu, celebramos a sua obra na data da sua morte (10 de junho de 1580). Passou a vida na capital portuguesa, tendo andado ainda em naus pelo oriente, Ceuta e Gibraltar, onde terá perdido o olho direito. Até à sua atividade, um dos escritores considerados mais vanguardistas era o satírico Gil Vicente (1465-1536). Camões veio inovar, ao estilo dos italianos, em forma e temáticas. Já a inovação em palavras e em sintaxe é únicamente sua, já que era o pioneiro em Portugal.

Outras figuras femininas como Natércia, não faltam na obra do poeta, em alguns dos mais belos poemas de amor que há na memória portuguesa: desde a mulher cortesã de olhos azuis e cabelo dourado, passando pelas mulheres camponesas, Helena, Lianor, à cativa, Bárbora. Esta última, que contraria o ideal renascentista da mulher alva, é declamada em versos curtos e certeiros, numa beleza peculiar.

Aquela cativa / que me tem cativo, / porque nela vivo/ já não quer que viva. […]

Rosto singular,/Olhos sossegados,/Pretos e cansados,/Mas não de matar.

Uma graça viva,/ Que neles lhe mora, / Pera ser senhora / De quem é cativa.

Pretos os cabelos, / onde o povo vão / perde opinião / que os louros são belos[…]

Esta é a cativa/Que me tem cativo;/E. pois nela vivo,/É força que viva.

 

Nem tudo eram devaneios amorosos. Alguns poemas versavam mais sobre frustrações com a mudança ou com a sorte. E, embora não possamos fazer louvores à moral do Mestre, podemos relacionar-nos com algumas delas.

 

Os bons vi sempre passar

No mundo graves tormentos;

E para mais me espantar,

Os maus vi sempre nadar

Em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim

O bem tão mal ordenado,

Fui mau, mas fui castigado:

Assim que só para mim

Anda o mundo concertado.

 

Ou ainda:

Verdade, Amor, Razão, Merecimento,

Qualquer alma farão segura e forte;

Porém Fortuna, Caso, Tempo, e Sorte,

Têm do confuso mundo o regimento

 

Até parece mal falar sobre Camões sem referir Os Lusíadas, epopeia no estilo clássico. Devo relembrar que, dada a taxa de analfabetização, aliada ao facto de que o latim era a língua utilizada pela Igreja e nos comunicados reais, e apesar de já haver representantes do português na idade média (os autos de Gil Vicente, a Crónica de Fernão Lopes, etc), as fronteiras da língua não estavam bem definidas. Assim sendo, começando pelo título do poema, é aqui que Camões manipula, constrói e edifica o Português até à exaustão, em versos totalmente disruptivos.

Penso que faz sentido terminar com uma das mais famosas estâncias do Livro, um exemplo belo do romantismo de Camões para além do seu tempo (sim, se se diz que o romantismo surgiu apenas com Goethe em Werther, Camões, já na sua época, romantizava episódios medievais e falava de temas como a vontade de não ter nascido).

 

Tu só, tu, puro Amor, com força crua,

Que os corações humanos tanto obriga,

Deste causa à molesta morte sua,

Como se fora pérfida inimiga.

Se dizem, fero Amor, que a sede tua

Nem com lágrimas tristes se mitiga,

É porque queres, áspero e tirano,

Tuas aras banhar em sangue humano.

Camões, o poeta que inventou o Português, nasceu há 500 anos. Está na nossa boca em tudo o que dizemos, na nossa mão em tudo o que escrevemos. Assim, não há dúvidas de que irá viver muito para além disso.

Artigo escrito por Sara Cortez

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