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JUP Retrospetiva

JUP Retrospetiva 2020: Teatro

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Peter Brook abre a sua obra literária “O Espaço Vazio” com as seguintes palavras: “Posso chegar a um espaço vazio qualquer e fazer dele um espaço de cena. Uma pessoa atravessa esse espaço vazio enquanto outra pessoa observa – e nada mais é necessário para que ocorra uma ação teatral.” De facto, o teatro é pura e simplesmente isso: coisas que acontecem. As pessoas são atores, as suas vidas são histórias e as ruas, casas e percursos são a melhor cenografia do mundo.

Mas este ano, mais que todos os outros, ficou provado que o teatro é mais do que se pensava. 

Apesar das carreiras dos espetáculos continuarem ridiculamente curtas e insuficientes para fazer uma peça crescer em cena, e apesar das grandes casas continuarem a apostar em produções mais vistosas do que necessárias, 2020 conseguiu: gritar o teatro-urgente, o teatro-possível, o teatro para todos, e o teatro que nem sequer é teatro. Felizmente, nós pudemos estar aqui para ver. E, como diz John Berger em “Modos de Ver“: “olhar é um ato de escolha” – e 2020 teve boas opções. Aqui ficam algumas das melhores:

“Turismo” de Tiago Correia

O ano começou bem no início com A Turma a dar cartas. “Turismo” ganhou vida no palco do Teatro do Campo Alegre (Teatro Municipal do Porto) e conseguiu ser um autêntico clássico contemporâneo. A atual especulação imobiliária e os crescentes despejos urbanos são o mote da ação – porém, aquilo que parece ser uma história sobre o capitalismo escabroso é, na verdade, uma lamentação sobre a incerteza e a fragilidade das relações humanas.

Tiago Correia brinca ao teatro como poucos e atreve-se, como quase nenhum, a mudá-lo. Nas suas mãos o teatro é cinema, o teatro é poesia, o teatro é uma realidade não distante. E “Turismo”, sem nunca deixar de ser uma experiência multidisciplinar brincada, conseguiu ser autêntica revolução em forma de balão que rebenta ao ouvido e nos desperta para tudo o que está a acontecer nas casas ao nosso lado.

Fotografia: INTRO

“Sítio” da Companhia da Chanca

Às vezes, é preciso ir atrás do melhor. Ter olho para o encontrar. Isto porque, muitas vezes, “o melhor” não vêm aos ditos “melhores palcos”. No entanto, torna qualquer palco no melhor e maior sítio do mundo.

Diretamente da ruralidade de Coimbra, “Sítio” brilhou no Festival de Teatro de Viana do Castelo, em novembro. É uma peça de teatro físico, sem texto, que conta a história de um casal de idosos que vive numa aldeia do interior e recebe um postal que anuncia o nascimento do seu neto. Com o objetivo de lhe fazer chegar um “miminho”, os dois embarcam numa caminhada digna de epopeia. A aventura resulta num espetáculo em forma de “poema teatral musicado” que ilustra, de forma delicada mas real, o estado do interior desertificado, envelhecido e isolado.

Sem formalidades estranhas, os atores – fundadores da Companhia de Chanca – dão a cara por um teatro que tem o cerne no Sítio certo: as pessoas. E, com uma sensibilidade fora de série, constroem um teatro na comunidade, com a comunidade e para a comunidade.

Fotografia: Vítor Cid

“Catarina e a Beleza de Matar Fascistas” de Tiago Rodrigues

O espetáculo só aterra no Porto (no Teatro Carlos Alberto) em fevereiro em 2021, mas estreou em Guimarães em setembro deste ano e, desde então, o teatro nunca mais foi o mesmo. Tiago Rodrigues é um nome habitual nos aplausos do ano mas, neste em particular, merece uma ovação sem fim.

Nesta história, o futuro é o tempo eleito para nos falar melhor do presente. Em 2028, algures em Baleizão, no Alentejo, existe uma família que tem por tradição matar fascistas, numa época em que a extrema-direita assume o poder. Catarina, uma das mais jovens mulheres desta família, na sua primeira vez de matar, é incapaz. E o caos instala-se. Assim, Tiago Rodrigues repensa a violência, a democracia e a distopia mas, acima de tudo, pega, corajosamente, no teatro pelos cornos e pergunta: é isto que queremos?

Fotografia: José Carlos Carvalho

“Morte, Medos, Paixões – assim é a vida (e não propriamente por esta desordem)” do Teatro do Chulé

E, como não podia deixar de ser: uma relíquia do circuito underground. “Morte, Medos, Paixões – assim é a vida (e não propriamente por esta desordem)” esteve no “V Ciclo de Teatro Bonfim em Cena”, em fevereiro. Sob a direção loucamente criativa de Paulo A. Jorge, nasce um espetáculo de histórias, sons e sombras para todas as idades: crianças maduras (“vermelhinhas vermelhinhas, quase a cair da árvore”), jovens sensíveis e adultos com vontade de brincar.

A partir de autores como Afonso Cruz, Sérgio Godinho e Ingrid Chabbert, o Teatro do Chulé proporcionou um momento multidisciplinar transcendente e deixou claro que teatro infantil não é teatro parvo, nem teatro oco. Muito pelo contrário! O teatro infantil é o mais importante de todos os teatros, porque é aquele que dita se vamos ou não querer voltar ao assento do espectador quando crescermos – para lá viver mortes, medos e paixões. E, por este andar, vamos.

Fotografia: Teatro do Chulé

2020 não foi fácil, mas precisamente por isso foi memorável.

Sara Barros Leitão empurrou as gentes do teatro para as janelas e varandas e criou um micro-monólogo para atores em isolamento por causa da pandemia. “Proclamação Da Existência” foi o grito do Ipiranga, uma revolução sem sair de casa e a maior evidência que se faz teatro se se quiser fazer. Já os arrojados Palmilha Dentada, atiraram-se de cabeça para as plataformas online e beneficiaram do zoom (que, normalmente, só amplia defeitos e problemas). Logo em maio apresentaram “Máscara Social” e (dado a ano de défice performativo) nem no Natal descansaram, montando uma “Praça de Natal” online para acompanhar quem se sentisse só.

Mesmo num ano de loucos, o Teatro Nacional São João não desistiu de colocar os Clubes de Teatro a jogar ao Shakespeare, mesmo que à distância. E, no fim, ainda se atreveu, pela primeira vez, a levar a palco não-atores – com “Once Upon A Time“. Também o Teatro Municipal do Porto disponibilizou gratuitamente o Foco Famílias e trouxe para dentro das nossas paredes a diversão de uma sala de ensaios.

A agrafar a tudo isto, vários foram os teatros e companhias, a nível nacional, que tornaram públicas as gravações de espetáculos antigos e vários foram os grupos e estruturas que começaram a encenar online e a ler à distância.

Proibiu-se o calor humano e tapou-se os beijos técnicos com uma máscara. Mas os corpos respiram, dê por onde der. 

Fotografia: “O Balcão” – Teatro Nacional São João

“Que tempos são estes em que temos de defender o óbvio?”, indagou Brecht – num tempo que não interessa referir porque a frase parece intemporal. 2020 obrigou-nos a defender o teatro e tudo o que ele traz consigo – ou seja, tudo. E nós defendemos. O teatro adaptou-se, a equipa confiou e o público persistiu. As escolas (que têm no forno tantos dos futuros intérpretes, técnicos e criativos) batalharam e foram mais teimosas que a pandemia do toque.

Os artistas, aflitos, só agora deitam cá para fora o que não conseguiam deitar com as portas e janelas trancadas. Sim, há menos cadeiras quentes e menos pares de aplausos mas há uma vontade ainda maior de estar e fazer – quando e onde nunca foi feito. Porque 2020 foi demasiado irreal para o teatro não fazer dele ficção.