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Artigo de Opinião

A tecnologia arrasa pandemia!

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Já nos imaginamos a viver num mundo sem tecnologias? Para a maioria dos portugueses é impensável, mas para outros, é algo remotamente conhecido que passa despercebido. E como é possível tal realidade, num país tão pequeno como o nosso?

Parece (e é certo que o é) incontornável o uso da tecnologia no dia-a-dia dos cidadãos, como certos são os caminhos que nos levam até ela, na busca de soluções imediatas e eficazes, para quem tem o privilégio de fazer parte de uma sociedade, a que chamamos desenvolvida. São, também, as tecnologias que nos fazem acreditar que “Vai tudo ficar bem”, mas, arrisco a dizer, que nada ficará como dantes! Tudo, por causa de um maldito vírus capaz de nos tirar a sensatez e o equilíbrio saudável, por tudo aquilo que em excesso gera dependência. Aqui o temos, sem convite, aviso prévio ou pedido de licença, atravessa o mundo com a força da sua invisibilidade. Sem dúvida, uma luta desigual que parece levar a melhor e o melhor do Homem, a sua razoabilidade. Como qualquer acontecimento trágico e impactante à escala mundial, a pandemia da Covid-19 garante já o seu lugar na história, levando inevitavelmente a uma mudança das sociedades, pelo menos, da sociedade da qual os portugueses fazem parte.

É incontornável não falarmos da pandemia, quando a ela se deve a multiplicação de necessidades e a urgência das soluções impostas. Aceitamos tudo, para estarmos conectados com o mundo e para que a economia nacional não colapse ou nos faltem os bens essenciais que nos mantêm, aparentemente, saudáveis. O nosso direito de liberdade foi limitado e restringido, por razões que todos (pelo menos, a maioria) consideraram justificáveis, e estes são argumentos válidos que nos fazem compreender, ainda que questionáveis, as imposições laborais que assumimos, onde as tecnologias são levadas ao máximo. O computador, o telemóvel e o acesso à internet, são hoje ferramentas de trabalho indispensáveis, mas também, o ópio do povo, o comprimido, o xarope ou o Valium, que nos mantêm estranhamente sossegados, mas simultaneamente ativos e ávidos, no desempenho das nossas funções. Talvez seja mesmo isso, o efeito tranquilizador e confiante que as tecnologias nos proporcionam (para quem as tem, é certo), ou então porque somos um povo tolerante e pacífico, que compreende e aceita o confinamento como um dever patriótico maior e se submete às regras do trabalho à distância, e que como tudo que é novidade, desperta interesse. O teletrabalho, assim se chama, foi a solução encontrada para o funcionamento contínuo de muitas empresas, instituições e, especialmente, as escolas que de um momento para o outro se ajustaram e abraçaram a causa do ensino à distancia (E@D, claramente, um apelo ao digital), tão rápido e eficiente quanto possível. A real utilidade das tecnologias digitais é evidente, não sendo a solução perfeita nem tão pouco, inquestionável, são inegáveis as vantagens que proporcionam.

Como consumidora rendida às aptidões tecnológicas, reconheço bem os benefícios, mas, mais do que tudo, inquietam-me os seus inconvenientes. Tenho como premissa, a necessidade de contacto pessoal nas relações sociais, essencial no equilíbrio emocional e mental dos indivíduos, pelo que o diálogo e o contexto presencial de qualquer relação, tornam mais coesa, motivadora e dinâmica a sua existência. Apesar do desconforto de eventuais relações laborais, com patrões autoritários ou colegas complicados ou chatos (aqueles que não deixam o trabalho fluir), acredito que o afastamento social contínuo pode vir a comprometer, a longo prazo, a natureza primária do Homem, enquanto ser social, mas também a sua capacidade de interação num espelho de sociedade multicultural onde assenta a própria definição do grupo que integra. O teletrabalho possibilita-nos o conforto e a tranquilidade na execução de tarefas, é certo, mas sem darmos por isso, desenvolvemos um modo contínuo de trabalho, horas a fio, surpreendentemente isolados e prisioneiros de um ecrã. As constantes e incessantes videochamadas que nos entram pela casa, traduzem-se numa verdadeira dependência tecnológica, em formato viral. Como se fosse ineficaz ou não fosse possível comunicar de outra forma, que não aquela que nos assalta a privacidade de um espaço que é só nosso, o lar, agora dissimuladamente exposto e perigosamente tomado. Convite para aqui, convite para acolá, e os encontros sucedem-se nas plataformas digitais que todos dominam. Claro que podemos desligar a câmara e ninguém nos vê ou vemos os outros, mas nesse caso, acho ainda mais esquizofrénica a situação. Confesso que ao fim de um certo tempo de conversa, a minha disposição altera-se, tal como o diálogo, que passa a ser impraticável e até, caótico. As interrupções constantes de rede que nos desconcertam, os atropelos dos mais desgovernados que não respeitam a ordem de intervenção, o cruzamento de conversas das videochamadas em simultâneo pela casa e o ruído de fundo dos miúdos em alvoroço. “Desliga o microfone, se não, não conseguimos ouvir” – apela um dos presentes. Ao fim de algum tempo e pela insistência do pedido, responde ele: “Onde? Não sei onde isso está! O que faço? Não sei… tenho que desligar o computador e reiniciar?”. Mais fácil é mandar embora as crianças ou dispensá-lo da reunião, seria mais proveitoso, por certo! Nem o cenário de retaguarda mais visto, a “estante de livros”, a assumir o aparente ar intelectual de quem lá mora, salva o momento, não fosse a rotina e o cansaço das reuniões levar ao relaxamento da malta e à consequente imprecisão da imagem passada (e lá se vai o politicamente correto e a postura formal).

É estranho o que fazemos por um bem maior, contra tudo o que são os nossos princípios e vulnerabilidades, como se fosse natural o “bigbrother” caseiro a que nos sujeitamos. Com toda a confusão, mesmo assim, mantemo-nos submissos e cumpridores das nossas funções. Mas que fenómeno é este? Será um efeito contagiante de necessidade de integração no grupo ou um hipnotismo coletivo de subjugação do cérebro humano?

Não se trata da gestão social das relações, com quem livremente escolhemos contactar ou privar por meio de uma câmara, e muito menos de uma ocupação lúdica quando o ócio é a opção, mas uma obrigação patronal que nos desmancha e torna reféns da exposição mediática. Um verdadeiro contrassenso, tendo em conta os direitos fundamentais garantidos (e bem) no código penal, como a reserva da vida privada, ou não fossem os sucessivos pedidos de consentimento de imagem que vigoram em todas as atividades. Acresce, ainda, a fragilidade na segurança das plataformas, facilmente manipuladas por quem exerce domínio na área. Talvez por alguma falta de oxigénio (aquele que só é bom quando inspirado livremente), o nosso cérebro fosse esmorecendo na sensatez e convicção de princípios, comprometendo seriamente a sua tranquilidade de espírito. Sabemos que o nosso dever é maior e, rejeitando a proximidade, o contacto físico e o abraço sentido, abrimos a porta à tecnologia digital (fazendo jus à fama de sermos um povo acolhedor) e, sem que déssemos por isso, a solução que parecia razoável, revelou excessos na vulgarização e ilegalidades (suspeito, nalguns casos) na ação.

Pessoalmente, não consigo imaginar um mundo sem tecnologias… é certo!

Seria um verdadeiro desespero (quiçá, impossível) muito para além da nossa capacidade de superação e resiliência, não tenho dúvidas. No mínimo, o desafio do isolamento seria muito mais trágico e incomportável, não fossem os meios digitais e a presença da internet na casa dos portugueses. No entanto, ouvindo há uns tempos a intervenção de um certo deputado (jovem, por sinal) na Assembleia da República, tive para comigo uma reação de que me fez travar a fundo, derrapando mentalmente na confusão instalada. Dizia ele: “Ninguém pode ficar sem água, luz, gás e internet, durante a pandemia que os portugueses estão a viver…”, numa tentativa de apelo (julgo eu) à garantia dos direitos básicos dos cidadãos. Confesso que fiquei a pensar no que quereria ele dizer com aquela interposição convicta, quase convincente. É certo que a água, a luz e o gás são bens essenciais que todos precisamos e devemos ter, pelo menos (é o que se espera) num país civilizado e desenvolvido como o nosso. Quero acreditar que os senhores governantes estão atentos às necessidades do povo, senão antes, agora, pelas condicionantes do isolamento e que, mais do que nunca, vão colmatar todas estas necessidades. Bom, todas elas, tenho sérias dúvidas, mas algumas delas, espero que sim. E se fosse inocente diria, descansem os cidadãos das zonas do interior do país que é agora que tudo se resolve e, quiçá, se o Sr. Deputado tiver sido convincente o suficiente, ainda levam o bónus da internet! Estaremos nós noutra dimensão estrutural do problema ou será que o problema desestruturou a mente de alguns? Não tendo a pretensão que concordem comigo, posso estar redondamente enganada e ser profundamente injusta, mas só pensei num perfeito disparate. Correndo o risco de ser mal-entendida, e, por isso, criticada, não me parece razoável que o acesso à internet seja um bem de primeira necessidade (sendo certo que seria muito útil), ao ponto de ser comparado à água, luz ou gás, para quem muito provavelmente nem tem apetrechos digitais ou entende destas tecnologias. Mas se faltar o que comer, quiçá se possa entreter a falar com a amiga no Skype ou WhatsApp e se esqueça da fome. É certo que a boa disposição também alimenta a alma… mas só a alma, o que neste caso é muito pouco, convenhamos. Estará o senhor deputado a apelar para que pessoas? Os ricos não são nem os outros que podem pagar, com certeza, então só podem ser os necessitados… em tudo! E então, se a premissa da água, do gás e da luz não está garantida, então a internet não é prioridade e, sendo assim, a intervenção é descabida. Se a ideia é garantir a internet a todas as pessoas, então agora questiono em que princípio assenta a obrigatoriedade de tal premissa?

Não quero com isto dizer que o acesso à internet é dispensável e que não valorizo, antes pelo contrário, assumo que foi das melhores conquistas que a minha geração teve o privilégio de assistir, com o contraste de vantagens e facilidades que ganhamos e que há cerca de duas décadas nem sonhávamos ter (pelo menos, a maioria de nós). É a realidade da geração atual, os Millenium, que com ela nasceu, manuseando os meios tecnológicos como ninguém, transpondo as eventuais dificuldades com a facilidade natural de quem não vislumbra outra realidade, se não aquela que lhe é apresentada. E, de facto, se pensarmos num mundo de acessibilidades, tudo funciona à base de um simples clique, desde que haja rede digital, para um cem número de facilidades. Recordo como a internet entrou timidamente nas escolas, com os infindáveis problemas típicos de algo que está, pela primeira vez, a ser testado e que nem sempre corresponde às expectativas, para assumir agora o papel preponderante e inquestionavelmente indispensável. Reconheço a evolução da sociedade pela evolução da própria tecnologia, nem sou retrógrada ou adepta do tempo das cavernas, mas não encontro até ao momento um critério que me faça ponderar a “classificação” de bem de primeira necessidade, digno de ser reivindicado como direito de acessibilidade imprescindível (desculpem-me os mais acérrimos defensores destes meios). Sim, é imprescindível para a equidade de oportunidades, nomeadamente, o acesso ao atual regime de ensino, o recurso aos meios tecnológicos, isso é indiscutível, mas também o é ter um computador e, já agora, literacia digital para usar todas estas ferramentas. Por isso pergunto, porque não foram também incluídos no apelo?

Num simples exercício de retrospetiva, na memória das gentes que viveram sem internet (basta na casa dos 50), e sem recorrer às vantagens que hoje têm, que condições satisfaziam as suas necessidades e o que realmente faltava na casa dos portugueses? Penso em várias coisas e todas elas válidas, mas não me ocorre a necessidade de internet para os remediar ou fazer dormir tranquilos, como se os problemas desaparecessem. Por via da minha atividade profissional, contacto com pessoas de meios desfavorecidos com carências várias, e garanto que a internet não é a solução para os seus problemas, apesar de óbvia importância que a tecnologia tem para o desenvolvimento saudável dos jovens, integrados numa sociedade digital.

Somos, por certo, privilegiados por possuirmos o acesso à internet e a todas as outras tecnologias digitais, que não nos matam a fome nem nos tiram a sede, mas que nos colocam a par do progresso. Que nos facilitam a comunicação com a empresa onde trabalhamos, mas onde não podemos estar. Que nos permitem ver um amigo ou um familiar que não podemos abraçar, mesmo que do outro lado do mundo. Que possibilitam o acesso ao ensino e aprendizagem dos que a elas recorrem, quando não podemos estar na escola. Seria justo, por isso, que nascêssemos todos com o mesmo patamar de oportunidades, mas também por isso, e porque sabemos que não existe essa equidade, é hipócrita querermos essa igualdade só porque estamos em tempo de pandemia e isolamento social, como se numa situação normal esse pressuposto perdesse a relevância.

Somo iguais enquanto espécie, mas seremos sempre diferentes enquanto parte da humanidade. Quando o vírus for vencido, de uma forma ou de outra, já não seremos os mesmos. Quando tudo isto passar, iremos certamente estar diferentes, uns mais do que outros, veremos prioridades no que dantes víamos indiferença. Continuaremos a depender das tecnologias, é certo, e muitos manter-se-ão vidrados no ecrã, mas talvez, passemos a valorizar o tempo em família e a nossa capacidade de superação em momentos de grande privação. A emergência pandémica alterou os nossos comportamentos e, sem dúvida, acentuou as diferenças sociais, mas também nos aproximou, a todos, da fragilidade e vulnerabilidade humana. Quando a tecnologia digital assume superioridade, o que nos resta enquanto espécie dominadora do mundo, agora dominado?