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Opinião

Não é Tempo de Recuar: Resistir ao Avanço da Extrema-Direita e Proteger os Direitos LGBTQIAP+

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Releitura colorida e cubista da obra Guernica, de Picasso, com temática Direitos LGBTQIAP+. Um unicórnio com crina arco-íris aparece no centro da imagem, em agonia. Ao seu redor, pessoas expressam dor e desespero; uma mulher segura uma vela, outra cobre os ouvidos. Um homem agressivo à direita grita e segura um escudo com os dizeres "Far Right". Elementos como a bandeira do arco-íris e símbolos queer estão presentes, simbolizando resistência diante da violência.
Guernica Queer — releitura da obra-prima de Pablo Picasso a partir das lutas e resistências da população LGBTQIAP+ | Imagem: SORA IA

Os avanços de políticas extremistas aniquilam sonhos ao inviabilizar existências não normativas. Em tempos de violências, manter-se firme é um ato de coragem que se faz necessário. A luta não é um lugar confortável porque o conforto é um estado de espírito de quem nunca precisou ser combativo. 

Estamos vivendo num momento crítico em todo o mundo: a ascensão da extrema-direita, com discursos que atacam minorias e ameaçam direitos conquistados, exige vigilância e ação. Em Portugal, o partido Chega tornou-se a segunda força política no Parlamento.  Seu líder, André Ventura, está sob investigação por incitação ao ódio contra a comunidade cigana.

Mas essa retórica não se limita a uma minoria étnica; ela representa uma ameaça mais ampla aos direitos humanos, incluindo os das pessoas LGBTQIAP+. A ILGA Portugal alertou para o sério risco de retrocesso nos direitos das pessoas LGBTQIAP+, apesar de avanços recentes.

Em dezembro de 2023, Portugal deu um passo importante ao criminalizar as chamadas “terapias de conversão”, práticas pseudocientíficas que visam alterar a orientação sexual ou identidade de género de uma pessoa. No entanto, essa conquista está sob ameaça diante do crescimento de forças políticas que promovem discursos de ódio e desinformação.

A comissária para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, Dunja Mijatovic, denunciou em fevereiro que pelo menos 2% da população LGBTI europeia sofreu práticas de conversão.

A narrativa distorcida da extrema-direita se utiliza de um falso conceito político de “ideologia de gênero” para atacar políticas de inclusão e direitos das pessoas LGBTQIAP+, apresentando-as como ameaças aos valores tradicionais. Esses discursos não apenas desinformam, mas também fomentam o preconceito e a discriminação

A luta pelos direitos das pessoas LGBTQIAP+ é uma luta por dignidade, respeito e igualdade. Não podemos permitir que discursos de ódio e políticas regressivas desfaçam os progressos alcançados. É fundamental que a sociedade civil, organizações de direitos humanos e todos os cidadãos comprometidos com a justiça social se unam para resistir a esses retrocessos.

A história nos mostra que os direitos não são garantidos; eles devem ser defendidos continuamente. Neste momento, mais do que nunca, é essencial afirmar: não é tempo de recuar.

Somando números, Criminalizando os Direitos LGBTQIAP+

O avanço desse discurso facista-antidemocrático no mundo tem impactado diretamente os direitos das pessoas LGBTQIAP+, sobretudo das populações trans. Nos Estados Unidos, o Partido Republicano impulsionou uma série de legislações antitrans em estados como Flórida, Texas e Tennessee. Segundo a Human Rights Campaign, mais de 550 projetos de lei anti-LGBTQIAP+ foram propostos apenas em 2023, com foco particular em barrar acesso de pessoas trans à saúde, ao esporte e à educação. 

O caso do Alabama, onde o tratamento hormonal para jovens trans foi criminalizado (2022), exemplifica o retrocesso e a tentativa de apagar essas identidades do espaço público. Trata-se de uma ofensiva política que usa os corpos dissidentes como bodes expiatórios para alimentar pautas conservadoras.

Na Hungria, a criminalização da existência queer é parte de uma estratégia autoritária do primeiro-ministro Viktor Orbán para consolidar o poder através do moralismo. A emenda constitucional que proíbe “a promoção da homossexualidade” entre menores de idade, aprovada em 2021, foi amplamente criticada pela União Europeia por violar os direitos humanos e fomentar a censura. 

Relatórios da ILGA-Europe e da Amnistia Internacional alertam que medidas como essas aumentam a violência simbólica e física contra pessoas LGBTQIAP+, além de restringirem o trabalho de ONGs e artistas queer. A legislação húngara espelha movimentos semelhantes em países como Rússia e Polônia, onde o “pânico moral” serve para justificar a erosão democrática.

Quem tem medo das pessoas LGBTQIAP+? 

A resposta passa por entender que as existências dissidentes desafiam sistemas binários de poder, gênero e sexualidade. Para governos autoritários, afirmar-se fora da norma heterocisgênera é um ato político perigoso, pois ameaça os pilares ideológicos de controle. O avanço da extrema direita se alimenta do medo do diferente, e os corpos queer tornam-se alvos preferenciais. 

Apesar de serem alvo constante de políticas regressivas, as pessoas LGBTQIAP+ movimentam bilhões na economia global, formando um dos segmentos mais influentes do consumo contemporâneo. Estima-se que o poder de compra global da comunidade LGBTQIAP+ ultrapasse os 4 trilhões de dólares, segundo a consultoria Out Now

Só nos Estados Unidos, esse poder ultrapassou os 1,4 trilhões em 2021, de acordo com a empresa de pesquisas LGBT Capital. Este impacto vai além do consumo: envolve turismo, moda, tecnologia, saúde e entretenimento. Estudos indicam que marcas que se posicionam de forma consistente em apoio aos direitos LGBTQIAP+ tendem a atrair maior lealdade desse público, mas também enfrentam boicotes de setores conservadores — uma tensão que evidencia como o mercado está entrelaçado às disputas políticas.

A chamada ‘economia queer’ não diz respeito apenas ao consumo, mas também à produção cultural e à inovação. Pessoas LGBTQIAP+ são responsáveis por fomentar indústrias criativas e gerar valor ao atuarem em frentes como tecnologia, artes e design. Entretanto, essa potência econômica não se converte, muitas vezes, em segurança material para existir.

Um relatório da McKinsey (2020) mostrou que pessoas LGBTQIAP+ enfrentam maiores taxas de desemprego, insegurança financeira e discriminação no ambiente de trabalho, especialmente indivíduos trans e não binários. Assim, mesmo sendo economicamente relevantes, ainda enfrentam barreiras estruturais que limitam seu pleno potencial de contribuição.

Reconhecer a relevância financeira da população LGBTQIAP+ deveria, em tese, servir como argumento pragmático contra políticas de exclusão. No entanto, em contextos de avanço da extrema direita, até mesmo dados de mercado são ignorados em nome de uma ideologia normativa que prega uma falsa moral e “bons costumes”. O boicote a empresas que apoiam o orgulho LGBTQIAP+, como a Bud Light e a Target nos EUA, mostra como o capital pode ser instrumentalizado tanto para inclusão quanto para repressão. 

Em vez de protegerem suas populações, esses regimes escolhem transformar minorias em inimigos internos ao alimentar discursos de ódio e promover a homofobia. Por isso, mais do que nunca, resistir é existir — e documentar essas resistências é também uma forma de lutar contra o apagamento. 

Não Recuar: A Contradição do Espelho

Há uma ironia trágica que atravessa muitas das lutas contemporâneas: a de que, ao combater aquilo que condenam no outro, algumas pessoas estão, na verdade, tentando extirpar aspectos de si mesmas que não suportam reconhecer. É como se, ao mirar esse “defeito alheio”, estivessem diante de um espelho — mas sem coragem de assumir o reflexo. O gesto de expurgar, de arrancar com veemência aquilo que incomoda, revela mais do agressor do que do alvo.

Essa dinâmica não é nova. Talvez seja uma das manifestações mais recorrentes do que há de demasiadamente humano em nós: a contradição entre o que proclamamos e o que somos. Lutamos contra o mundo na esperança de nos redimir, de encontrar na salvação do outro um atalho para o acerto de contas interno que evitamos há tempos.

Mas o que há de ético nesse gesto? Em que medida o nosso desejo de transformação externa não mascara uma recusa de transformação interior? A história está repleta de cruzados morais que, ao apontarem os vícios do mundo, apenas encenavam suas próprias faltas. É mais fácil guerrear do lado de fora do que encarar a vulnerabilidade de quem somos.

Salvar o outro, nesse contexto, torna-se um ato ambíguo — não raro, uma tentativa de resgatar a si mesmo sem ter que passar pela dor da autoconfrontação. O problema é que esse tipo de salvação raramente cura. Quando o impulso de corrigir vem da negação e não da escuta, o resultado tende a ser mais destrutivo do que libertador.

O desafio, então, talvez seja o de inverter o gesto: abandonar a ilusão de pureza, reconhecer as próprias contradições e, só então, estender a mão ao outro — não como um salvador, mas como alguém igualmente ferido, igualmente humano. Lutar, então, talvez seja a linguagem mais potente para comunicar as nossas existências.  

 

Artigo da Autoria de Ícaro Machado

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