Crítica
LUX: Primeiro Amar ao Mundo, Depois Amar a Deus
Rosalía canta em treze idiomas para nos lembrar que “ainda que falasse as línguas dos anjos, sem amor, nada seria”. “LUX”, novo álbum da artista espanhola, estreou com 42,4 milhões de streams no Spotify, superando os números do fenômeno MOTOMAMI. A faixa de maior destaque é “La Perla”, parceria com Yahritza Y Su Esencia, que debutou em #5 com 4,49 milhões de streams.
La Rosalía, 33 anos — a idade de Cristo — lançou o seu quarto álbum de estúdio, LUX (7 de novembro de 2026). Na obra, 15 canções nos contam sobre como a cantora — que ganhou o mundo — percebeu que o amor ainda é a fonte de todas as coisas. Aclamado pela crítica especializada — e por essa gay que aqui vos escreve —, LUX traz de volta a essência musical da cantora catalã que ocupou a Times Square com El Mal Querer, mas que já tinha provado ao mundo o seu valor em Los Angeles (2017). Madonna, rainha do pop, já abençoou a era LUX: “não consigo parar de ouvir! você é uma verdadeira visionária!”.
LUX surge como um gesto de insubmissão: um álbum que abandona os reflexos imediatos do pop e se instala num território de ritual e risco. Orquestral, fragmentado em movimentos e cantado em múltiplas línguas, ele desloca a expectativa de êxito para o campo da experiência — uma missa íntima onde convivem o sagrado e o sentimental, a dor e o deslumbramento. O que em MOTOMAMI (2022) era energia explosiva, aqui se torna recolhimento, quase uma oração. Rosália parece buscar não o êxtase da batida, mas o silêncio que vem depois do impacto.
Todas as críticas até então convergem num ponto: LUX exige tempo. É um álbum que se ouve com o corpo inteiro, mais próximo da contemplação do que do consumo por consumo. A grandiosidade da London Symphony Orchestra e a “subdivisão” do álbum em quatro atos reforçam a ideia de um projeto pensado como um espetáculo linear. A escala e a audácia impressionam, mas também podem afastar: o disco torna-se menos acessível — por vezes hermético —, como um exercício de fé e de autoescuta profunda, desses que exigem recolhimento e a paciência de quem reza um rosário.
Para a Pitchfork (8,6/10, Best New Music), trata-se de “uma oferenda sincera de pop clássico vanguardista que atravessa gênero, romance e religião”. O Guardian (★★★★★) fala num “embate exigente e distintivo entre o clássico e o caos”; o New Yorker lê em LUX uma recusa deliberada à lógica do pop fácil — “menos fácil de ouvir, mas impossível de esquecer”. A Variety descreve o álbum como “odisseia espiritual” e a Rolling Stone Brasil (★★★★★) o chama de “trabalho transcendente”, coroando Rosalía como “a agente do caos mais provocativa do pop”. Entre a liturgia e o delírio, LUX reafirma o que já se suspeitava: Rosalía não quer apenas fazer música, quer construir mundos (dados colhidas nas plataformas).
Berghain: Sexo, Violencia Y Llenas
Amar é um ato de coragem. No single que nos ofereceu a era LUX, Rosália traduz em instrumento, vocais, coros e arranjos, todo o desespero de se (des)apaixonar: I’ll fuck you till you love me. Num videoclipe belíssimo, diga-se de passagem, observamos todo o caos que é o inferno do igual na sociedade da transparência de nossa e-contemporaneidade digital (HAN). Ela acertou muito iniciando com a canção mais “clássica” do álbum. Sempre servindo conceito, mãezinha.
O arranjo orquestral que percorre todo o álbum pode até evocar o romantismo clássico de um amor teatral — aquele em que imaginar jardins, travar batalhas e se entregar a amores impossíveis foi, por séculos, uma contraditória razão de existir —, mas não se deixe enganar: as canetadas de Rosalía vão fazer você refletir muito. Entre metáforas e referências culturais, destaco “Dios Es um Stalker”, “La Rumbla Del Perdón” e a minha favorita, “La Yugular” <3
Outrora, a musicalidade ignorava o que se podia dizer, mas instigava fantasias: uma visão mais imaginativa do mundo abstrato — primero amaré el mundo y luego amaré a Dios. Hoje, porém, somos demasiadamente humanos: mais literais, menos sentimentais. Ela foi assertiva ao trazer essa atmosfera clássica como sua verdadeira Reliquia.
O Renascimento (séculos XIV-XVII) foi um movimento que valorizou o humanismo, a razão e a Antiguidade Clássica, focando no homem e na ciência, enquanto o Romantismo (final do séc. XVIII-XIX) surgiu como uma reação, enfatizando emoções, individualismo, subjetividade e a natureza, criticando a rigidez do Neoclassicismo e buscando uma expressão livre da alma.
Então, foram precisos treze idiomas para sintetizar que “ainda que eu falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria”(1 Co 6:1-8). Ouvir as 21 gramas (mais referências, bitch!) da Rosalía entoar em árabe o que, pra mim, é o êxtase da canção “La Yugular”, é lembrar que não devemos dedicar tempo a odiar lucífer. Toda a teatralidade apocalíptica instrumental, a evolução do passo vocal, a letra… a sua posição no álbum… o idioma do refrão, o tom, os arranjos… o significado da música em si, que é sobre amar Deus… “a million doors aren’t enough”. Nesse semiótica, o refrão surge como uma prece que antecede uma execução. Em nome de Deus, é o fôlego antes do mergulho em tempos de lutas por terra, amor e fé. É a minha predileta da era LUX.
LUX: Memória Latina
Um verdadeiro poema que se canta em tons de Fado (música tradicional portuguesa). A canção Memória, uma parceria entre Rosalía e Carminho, representa um encontro sensível entre duas vozes e culturas. Rosalía canta em português pela primeira vez. Essa construção íntima da letra reforça a natureza reflexiva do tema, onde a memória e o vínculo emocional se entrelaçam.
Além disso, o vestígio do género do fado no arranjo e na interpretação torna-se perfeitamente adequado à proposta do álbum de Rosalía e à dramatização emocional da faixa. O fado — com a sua carga de saudade, melancolia e introspecção — “casa” de forma natural com o tom lírico da canção e com a expressão vocal de Carminho, uma referência do fado contemporâneo.
A colaboração assim não só atravessa fronteiras linguísticas e estilísticas como também aprofunda o diálogo entre o universo da cantora espanhola e o património musical português. O tema foi escrito por Carminho, Rosalía, Armando Machado, Sir Dylan e Noah Goldstein, e conta com a participação do Coro de Cambra del Palau de la Musica Catalana e da Escolania de Montserrat.
Em entrevista ao portal de notícias SAPO, a artista portuguesa revelou que, inicialmente, o “Memória” iria fazer parte do alinhamento do seu mais recente álbum, “Eu Vou Morrer de Amor ou Restir”. Mas, depois do convite para Rosalía participar no tema, a cantora espanhola pediu para que a canção passasse a fazer parte do seu próprio disco, “LUX”.
EL Mal Querer
Lembro-me quando a minha amiga Carlota (in memoriam) me mostrou o videoclipe de MALAMENTE. Como pode uma miúda entregar um videoclipe com uma estética tão real, fotografia impecável, musicalidade cultural e, mesmo assim, flertar tão bem com o pop? O desespero de BAGDAD; a dançante DI MI NOMBRE e toda a carga cultural de DE AQUI NO SALES, fazem do EL Mal Querer uma obra prima.
Lançado em 2018, El Mal Querer projetou Rosalía internacionalmente e consolidou-a como uma das vozes mais inovadoras do pop contemporâneo. O álbum recebeu o Grammy Latino de Álbum do Ano e Melhor Álbum Pop Contemporâneo. Foi também indicado ao Grammy Awards de Melhor Álbum Latino de Rock, Urbano ou Alternativo e incluído em diversas listas de melhores álbuns da década, como as da Pitchfork, Rolling Stone e The Guardian.
Amplamente aclamado pela fusão entre flamenco tradicional e produção eletrônica experimental, El Mal Querer marcou o início da estética ousada que definiria a trajetória artística de Rosalía que segue relevante no mercado fonográfico mundial.
El Mal Querer nasce de um gesto de reescrita. Inspirado no romance anónimo do século XIII, Flamenca, Rosalía transforma a história medieval de ciúme, reclusão e desejo em uma narrativa contemporânea sobre libertação feminina. Assim como no livro, o álbum é dividido em “capítulos”, cada faixa acompanhada de um título e subtítulo que conduzem uma trajetória emocional — da paixão e do controle à consciência e à emancipação.
A artista recria o drama da mulher aprisionada não apenas nas letras, mas também nas sonoridades e imagens: o flamenco, com suas palmas, lamentos e tensões rítmicas, torna-se o fio condutor de uma linguagem híbrida que dialoga com o pop, o eletrônico e o experimental. Ao fundir tradição e vanguarda, Rosalía faz de El Mal Querer não apenas uma releitura de Flamenca, mas uma declaração estética sobre poder, gênero e resistência através da arte.
MOTOMAMI
Alguns singles antecederam o que, para mim, é a melhor farofa pop conceitual de 2022. A Palé, Auto Couture, Linda(parceria com Tochika), além de parcerias de peso como Lo Vas Olvidar, com a cantora Billie Eilish, canção presente na segunda temporada do fenômeno Euphoria (HBO) — que volta em 2026 e conta com a catalã no elenco —, Rosalía foi presenteada com o convite para gravar o remix de Blinding Lights, do cantor norteamericano, The Weeeknd. A canção “Blinding Lights” é a primeira música na história do Spotify a ultrapassar 5 bilhões de streams, um feito alcançado no final de agosto/início de setembro de 2025. A gata sabe preparar a cama, né?
Mas foi após subir às alturas com J Balvin que a cantora, que ficou conhecida por misturar referências flamencas às suas canções, embarcou rumo ao mundo da música ligeira comercial. De capacete estilizado e dando um rolê na sua “moto envenenada”, Rosalía ganhou o mundo numa das turnês mais criativas e digitalmente conectadas de sempre. MOTOMAMI marcou o mundo com a sua estética urban conceitual, conectividade digital (estreia numa live no TIK TOK) letras potentes e visuais vibrantes. Despechá foi a cereja do bolo da edição especial, assinalando o verão de 2022.
LUX: Primeiro Amar o Mundo, Depois Amar a Deus
E Deus, aqui, é tudo aquilo que te faz acreditar em si. Deixar o álbum Los Angeles por último é como voltar ao início — lembrar onde tudo começou: “lembrar de nunca esquecer”. Mesmo que, em Relíquia (LUX), Rosalía afirme ter “perdido tempo em L.A.” (a cidade, não o disco), é justamente esse primeiro álbum que torna possível o presente. É como quando digo que tudo o que veio depois de ARTPOP (Lady Gaga) só pode ser compreendido porque aquele delírio existiu.
Los Angeles é um álbum musical todo lindo e extremamente — musicalmente — arranjado. Ponto. A interpretação de desespero que a cantora traz na canção Nos Quedamos Solitos é arrebatadora. Se você nunca ouviu, não deixe passar.
Por Castigarme Tan Fuerte é toda essa Agonia do Eros que mente e traí sobre si próprio. Carregadíssima de cultura e tradição, a canção me toca de muitas maneiras, não apenas pela interpretação de Rosalía, mas pela letra objetiva e real: como uma sociedade moralista, logo, hipócrita.
Drama da melhor qualidade é o que você vai encontrar indo a L.A — cidade e álbum. toda instrumentalidade, vocais e arranjos, parece que você entrou num tasco com aspecto medieval, iluminação baixa e um palco lá no fundo.
LUX é o oposto disso. Como uma promessa illuminati de dar luz à razão, Rosalía canta sobre como a nossa Pulsão de Eros deveria ser canalizada para o mundo como o único caminho de se chegar a Deus. Em treze idiomas, fonéticas, lirismos e conectivos, a cantora nos conta como, na verdade, esse Deus criado pelo Homem nada mais é que um grande stalker: persegue porque julga, julga porque é incapaz de amar.
A experiência imersiva de LUX começa como uma caixinha de música sendo aberta e encerra como se estivéssemos num campo de flores a ver o por do sol lá no fundo… no horizonte… tírame magnólias.
Texto da Autoria de Ícaro Machado