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Crítica

A Lógica do Streaming: A Cauda Longa dos Algoritmos

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A teoria da Cauda Longa por traz do sucesso de Envolver, da cantora Anitta | Imagem de Reprodução
A cantora Anitta, artista brasileira mais ouvida no Spotify, levou o seu hit envolver (2022) ao Top 50 Mundo do Spotify, recebendo o título oficial no Guinness Book como a primeira artista solo latina a atingir o topo da plataforma de stream | Imagem de Reprodução

O novo sempre vem. Com a popularização e o uso massivo da internet — e toda essa potencialização desse mercado digital ancorado em algoritmos, inteligência artificial e managers —, o processo de divulgação, proliferação e, principalmente, compra de produtos e acesso a serviços culturais e de entretimento se dão, não somente pela publicidade tradicional propriamente dita, mas pela possibilidade de você ser encontrado por estes conteúdos antes mesmo que os encontre de fato: as coisas simplesmente aparecem na tela para você consumir.

O livro “A Cauda Longa – Do Mercado de Massa para o Mercado de Nicho”, de Chris Anderson, é esse ponto de partida capaz de dar suporte ao amplo debate sobre essa transformação dos mercados culturais na era digital. A teoria de Anderson estrutura-se, essencialmente, na ideia de que a internet aparece como um vetor para “descentralização do consumo e da produção de bens culturais”, permitindo que nichos, antes invisíveis ou pouco acessíveis, conquistassem espaço.

No entanto, ao revisitarmos essa obra de 2006 à luz do cenário e-contemporâneo digital, percebemos que o conceito da cauda longa não apenas se consolidou, mas também revelou novas camadas de complexidade, tornando-se uma chave referencial valiosa na análise do comércio cultural digital.

Em plataformas de streaming de música, como Spotify, por exemplo, essa lógica de distribuição é aplicada diretamente na recomendação de conteúdos: os usuários são guiados por algoritmos que lhes sugerem artistas e faixas similares aos seus hábitos de consumo. Mas, ao contrário do que Anderson previa como uma grande revolução democratizante, essa estratégia acaba por reforçar padrões de mercado, com algoritmos que priorizam produtos comerciais e dificultam a ascensão de novos artistas sem um investimento substancial.

A distribuição de frequências com uma “cauda longa” já é estudada por estatísticos desde pelo menos 1946. Se comparada a uma distribuição tida como normal, ou Gaussiana, a cauda longa apresenta uma quantidade muito maior de dados ao longo da cauda, o que permite que ainda mais material chegue no consumidor final.

A Cauda Longa, de Anderson, Ainda é Atual

A obra literária se estrutura a partir da exposição da teoria central e suas aplicações práticas, utilizando uma abordagem que combina exemplos históricos e estudos de caso sobre as mudanças no consumo cultural a partir da popularização do computador e do advento da internet como plataforma de consumo de compartilhamento de conteúdo. Dois anos antes da sua primeira tiragem, Chris Anderson publicou um artigo na revista estadunidense Wired (outubro de 2004), no qual ele mencionou a Amazon.com, a Apple e a Netflix como exemplos de empresas que aplicam esta estratégia.

Anderson argumenta que a economia digital eliminou as limitações físicas dos mercados tradicionais, tornando cada vez mais viável a comercialização de produtos voltados para públicos menores. Entretanto, essa visão otimista apresenta fragilidades. Primeiro que a promessa de um mercado mais diverso e descentralizado esbarra no fato de que as grandes plataformas ainda controlam os dados e as regras do jogo. Essa suposta autonomia do consumidor na escolha de conteúdos é, na realidade, um reflexo de uma curadoria algorítmica que privilegia artistas e produtos de maior apelo comercial.

Esquemas de premiações como o Grammys Awards (EUA), que podem, por vezes favorecer esses conteúdos mais populares, também reflete a essa dinâmica, pois grande parte do reconhecimento vai para produtos amplamente consumidos e promovidos pelas plataformas, deixando a cauda longa em segundo plano. Existem até produtoras de cinema que só escalam atores para seus projetos após uma análise do número de seguidores e engajamento nas redes desse profissional. Essas práticas reforçam o que Adorno e Horkheimer chamaram de “indústria cultural”, onde a produção artística se subordina às leis de mercado e à padronização do consumo.

Teoria Crítica: A Cauda Longa do Entretenimento das Massas

Fundamentado na Teoria Crítica (Escola de Frankfurt), o conceito de indústria cultural, formulado pelos sociólogos alemãs, Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, argumenta que a produção cultural no capitalismo é regida por princípios de padronização e massificação, resultando em uma sociedade de consumo passiva, conformista e, por isso, alienada. Essa lógica da cauda longa, à primeira vista, parece até conseguir desafiar essa estrutura cultural rígida ao sugerir que a internet é capaz de ampliar as possibilidades de escolha desse consumidor ao democratizar o acesso a bens culturais.

No entanto, na prática, essa descentralização não significa uma verdadeira quebra da indústria cultural, mas sim uma reconfiguração de seu controle. Isso porque as grandes corporações de tecnologia, como Google, Meta, Apple e Netflix, utilizam algoritmos para gerenciar o que é visível e acessível, criando uma nova forma de regulação cultural, exercendo esse papel de gatekeeper cultural.

Ao invés de um consumo legitimamente livre e diversificado, os consumidores são direcionados a conteúdos que reforçam padrões já estabelecidos, muitas vezes sem perceberem que suas escolhas estão sendo moldadas por sistemas automatizados que se autorregulam a partir da análise de impressões e, principalmente, da nossa interação nestas plataformas. A cauda longa, portanto, não elimina a lógica da indústria cultural, mas a adapta ao ambiente digital, onde o controle não se dá mais pela escassez de produtos, mas sim pela hierarquização algorítmica do que é recomendado e acessado.

Dessa forma, a teoria de Adorno e Horkheimer continua extremamente relevante, pois continua a provar que, mesmo sob a aparência de uma maior liberdade de escolha, o mercado cultural continua sendo estruturado por grandes corporações que ditam as tendências e limitam o impacto das produções independentes, servindo o fetichismo cultural de produção ligeiras.

Empresas como Spotify, Apple Music e Youtube Music dominam o acesso à música e outros conteúdos culturais, utilizando algoritmos que, embora promovam a descoberta de novos artistas, tendem a favorecer conteúdos mainstream que geram mais receita. Esses algoritmos são projetados para manter os consumidores engajados em produtos amplamente aceitos, o que perpetua uma espécie de monopolização das tendências culturais em detrimento das produções alternativas. Grandes artistas ainda pagam para manipular o algoritmo e “empurrar” músicas ignoradas em seus álbuns para os ouvidos dos fãs, mas é preciso capital para fazer o disco rodar e chegar nessas canções.

Algoritmos Performam Resultados Que Entretém

Artistas e gravadoras que detêm participações em serviços de streaming têm sido acusados de manipular artificialmente contagens de reprodução para obter vantagens no Spotify. Um caso notório envolveu Tidal — plataforma co-proprietária de Beyoncé e Kanye West — que teria inflado em até 320 milhões os streams de Lemonade e The Life of Pablo, conforme investigação da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia, com indícios de contas automatizadas reproduzindo faixas repetidamente.

Além disso, o uso de serviços de “stream farms” e bots, muitas vezes contratados por gravadoras ou agentes de marketing, teria distorcido números de artistas como French Montana e G‑Eazy. Embora Beyoncé não fosse acusada diretamente, o caso serve de alerta para práticas que beneficiam artistas ou selos com influência, prejudicando os independentes ao desviar royalties para contas falsas. Em resposta, o Spotify afirmou remover esses streams falsos do sistema de contagem, congelar royalties e até penalizar ou remover faixas do serviço quando identificado abuso (FONTE: The Guardian).

Toda essa dinâmica reflexiona nessa nova forma de controle da indústria cultural, onde as grandes corporações determinam o que se torna visível e popular. Ao priorizar os grandes sucessos e artistas patrocinados por grandes gravadoras, essas plataformas reforçam a hegemonia cultural, apesar da suposta diversidade de opções.

O resultado é uma ilusão de escolha: embora haja uma infinidade de conteúdos disponíveis, o que realmente alcança o mainstream continua a ser controlado pelas mesmas forças de mercado, restringindo a pluralidade cultural e reduzindo o impacto das produções de nicho ao espaço de uma bolha algorítmica.

Por vezes, alguns cantores ganham força e alcançam lugares antes inabitados. A cantora Anitta, artista brasileira mais ouvida no Spotify Brasil, levou o seu hit Envolver (2022) ao Top 50 Mundo da plataforma, recebendo o título oficial no Guinness Book como a primeira artista solo latina a atingir o topo do Spotify. Mesmo não sendo um lançamento, a coreografia — “el paso de Anitta” — viralizou no TikTok, e sendo reproduzida por muitas celebridades, foi capaz de levar a música ao topo. A sua fanbase também é muito conectada.

O Topo É o Começo

Assim, a obra Cauda Longa, de Chris Anderson, não apenas reflete a expansão das opções de consumo na atualidade, mas também as novas formas de controle sobre o que se torna visível ou permanece na obscuridade. Sim, na era digital é ainda mais comum que existam músicas capazes de “furar o sistema”, e estes ficam conhecidos como “artistas de um único single.

Afinal, chegar no topo das paradas não é mais tão difícil assim, o desafio é manter-se relevante do mercado volátil de musicas ligeiras. Ao oferecer uma visão otimista sobre a democratização do consumo cultural, argumentando que a internet permitiu o acesso a nichos antes invisíveis e marginalizados no mercado de massa, Anderson prometia uma esperança.

No entanto, na prática, a implementação desse fenômeno pelas grandes plataformas de streaming revela uma concentração de poder que contradiz parte desse ideal trazido na obra. O que temos é um mercado digital neoliberal logisticamente automatizado, essencialmente consumista e estrategicamente personalizável. Leia o texto completo clicando aqui.

 

Artigo da Autoria de Ícaro Machado