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Artigo de Opinião

UM OLHAR TRANSATLÂNTICO SOBRE O RACISMO

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Cheguei ao Brasil em Julho, em pleno inverno, esse inverno tropical de 18 ºC, quando as manifestações do mês anterior já tinham esfriado, mas deixando ainda um clima tenso de indignação e contestação. Cheguei a Belo Horizonte, em Minas Gerais, e a primeira impressão foi de avassalamento: era demasiada cidade, demasiados carros a congestionar as largas ruas sem fim, demasiados edifícios erguidos a tapar o belo horizonte, demasiada a massa de gente que circulava nos passeios em passos rápidos. Demorei a habituar-me à grande escala desse país onde cabe quase toda a Europa espremida entre a Amazónia e o Rio Grande do Sul, onde há cidades com mais habitantes do que em Portugal inteiro. No campus da Universidade Federal de Minas Gerais o número de estudantes é igual à população de Évora: 49 mil. Uma massa que, ao contrário da que circula no centro da cidade, é maioritariamente branca.

Foi no Brasil que despertei realmente para o grave problema que ainda é o racismo na actualidade. É lá que vive a maior população negra fora de África, o que se deve ao facto de ter sido o país a receber o maior número de escravos africanos, estimados em 4 milhões, no terrível tráfico humano que foi iniciado pelos portugueses. Imediatamente percebi a divisão brutalmente desigual da riqueza na organização da cidade, em parte por causa do sistema escravista que fundou a sociedade brasileira em absoluta desigualdade. Mas foi lentamente que fui reconhecendo o racismo velado. Os últimos censos mostram que apenas 45% da população de Minas Gerais é branca. E no entanto, não acreditaria nessa estatística se circulasse apenas pela universidade federal, onde os negros são uma raridade, uma excepção que por lá é estudada e discutida. Nos debates mais recentes estão os sistemas de cotas raciais, medida que deveria permitir um maior acesso de alunos negros e indígenas ao ensino superior.

Nos bairros ricos, os únicos negros que eu via varriam as ruas, regavam jardins, limpavam as casas luxuosas dos outros e vigiavam-nas através de janelas de vidro blindado. Nos bairros ricos um negro sem uniforme é suspeito, tal como o são os adolescentes da periferia que marcam encontros de grupo nos shoppings, nos recentes polémicos encontros que ficaram conhecidos na media brasileira como “rolezinhos”. A presença dessa massa de jovens maioritariamente negros nos lugares de consumo fez lançar todos os alertas de segurança. Reuniram-se em shoppings para conviver e se divertirem, mas os encontros resultaram em detenções, violência policial e o controlo das entradas nos centros comerciais, ainda que não tenha havido entre os grupos de jovens qualquer indício dos roubos e vandalização de que foram imediatamente acusados.

A questão de cor é clara: a classe pobre é maioritariamente negra e permanece excluída, com um desigual acesso ao trabalho, à educação, à saúde e à cidade. O mito da democracia racial criado pelo sociólogo Gilberto Freyre e a apropriação de elementos africanos na música, dança e cultura brasileira apenas escondem a dura realidade, na qual domina uma elite branca. É branca a elite económica e a classe política, branco o mundo académico, brancos os protagonistas das novelas, os apresentadores de televisão e as modelos nas capas de revistas. Antes de 2003 a história era branca, até ser instituída uma lei que incluiu nos currículos escolares a história e a cultura afro-brasileiras.

Apesar de existir uma igualdade de direitos reconhecida pela lei, não existe uma igualdade efectiva quando é tão visível a falta de reconhecimento e respeito pela população negra e a discriminação a que é sujeita. Mas o Brasil também me ajudou a despertar para o racismo existente em Portugal. Uma professora universitária negra confessou-me que, apesar de achar o meu país lindo, jurou não voltar depois da experiência humilhante que teve no aeroporto de Lisboa. Ao passar na alfândega com um grupo de professores para um congresso, como única negra foi a única a ser parada, questionada, e maltratada pelos seguranças. E eu ouvi a história com espanto e vergonha. Portugal é racista. Não existem dados sobre a percentagem de população negra portuguesa, mas em Lisboa é sabido que é bastante significativa. No entanto, a questão do racismo é praticamente ignorada no debate público, e é pouca a sensibilização em relação a este tema.

Mas num país que teve o vergonhoso papel histórico de iniciar o transporte de escravos africanos no Atlântico as questões do racismo deveriam ser debatidas. Combatidas. Num país que durante séculos manteve o tráfico negreiro e colónias num regime de repressão e discriminação, é necessária uma maior consciencialização sobre o racismo e um reconhecimento e respeito da população negra.