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Politicamente Correto

Politicamento Correto: Racismo, salazarismo, colonialismo e o legado português em xeque

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Ilustração: Soraia Ramalho

“O 25 de abril de 1974 não foi uma revolução, foi uma festa. Devia ter havido sangue, devia ter havido mortos, devíamos ter determinado bem as fronteiras para se fazer um novo país.”

As palavras são de Ascenso Simões, deputado do PS, escritas num artigo para o jornal Público e ponto de partida para a enorme comoção que causaram. Estas palavras chegam a meio de um debate que já se faz há anos, mas cujos contornos se têm agravado nos últimos meses. A discussão sobre o passado colonial de Portugal permaneceu inerte durante décadas e “Portugal está a sofrer, agora, passado 50 anos, com as consequências” desta política de “não vamos falar sobre isso”, como explica Luís Pedro Nunes, comentador do programa Eixo do Mal, numa Political Talks transmitida pela Academia de Política Apartidária.

Ascenso Simões veio rapidamente retratar as suas palavras, dizendo que o sangue de que falava, afinal, se tratava de algo “simbólico”, que devia levar a cortes a nível político e social. No mesmo artigo de opinião, o deputado socialista explicou que “os regimes totalitários constroem uma história privativa” e que o salazarismo foi ímpar nessa construção, “garantindo, até hoje, a perenidade dos mitos do desígnio português, dos descobrimentos, ou do império”.

“Olhar para acontecimentos dos séculos XVI, XVII ou XVIII com filtros do século XXI é profundamente ignorante e não é uma expressão de literacia”, contrapõe Nuno Melo, eurodeputado pelo CDS-PP.

Para Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo, trata-se de um país que não conseguiu “olhar para o espelho”, representante do passado, o que o impede de “se preparar para o futuro”. “É preciso olhar para o espelho e identificar aquilo de mal que fizemos coletivamente e decidir o projeto coletivo que queremos construir”, afirmou numa entrevista ao canal TVI24, sugerindo uma catarse histórica ao país, mas que nem todos acham necessária.

É o caso de Nuno Melo, eurodeputado pelo CDS, que afirma “não ter de se sentir culpado pelos erros” dos seus antepassados. Numa entrevista ao mesmo canal, acusou os “militantes de extrema-esquerda” de quererem aplicar um revisionismo histórico ao colonialismo, olhando “para acontecimentos dos séculos XVI, XVII ou XVIII com filtros do século XXI”, o que alerta ser “profundamente ignorante” e não se tratar de “uma expressão de literacia”.

As declarações surgiram no âmbito de um debate sobre o voto de pesar pela morte do general mais condecorado da história portuguesa, Marcelino da Mata, aprovado em Assembleia da República pela maioria do PS e pelo PSD, CDS, IL e Chega. Ascenso Simões criticou esta decisão como sendo um dos quatro tempos, no último ano, em que se regressou ao “salazarismo mental português”.

Marcelino da Mata: herói ou vilão?

Marcelino da Mata é o mais condecorado general português. Fotografia: JN

A figura é divisiva, principalmente pelas façanhas que protagonizou terem sido realizadas sob a égide de um regime autoritário, no combate para manter o Império Colonial Português. Foi um dos fundadores dos Comandos, uma tropa de elite na qual serviu desde o início da Guerra Colonial, em 1961, e na qual foi progredindo até major, em 2018. Já nessa altura se fizeram ouvir vozes contra esta promoção, sendo a de Vasco Lourenço, presidente da Associação 25 de Abril, uma das que se fez ouvir mais alto.

Acusava o major de cometer “crimes de guerra” na Guiné-Bissau, com “especial relevo” no ataque a Conacri, através da Operação Mar Verde, onde 500 tropas guineenses perderam a vida e 400 presos políticos foram libertados. Vasco relembra, já depois da morte de Marcelino, um relato do mesmo a um major, sobre uma operação não especificada: “entrámos na tabanca, deitámos granadas incendiárias para as palhotas, as pessoas fugiam para o centro da tabanca, matámos todos, homens, mulheres, crianças”. “Ele era claramente um ‘Rambo’ e torná-lo um herói é ofender todos os antigos combatentes que combateram dentro das regras”, conta ao Diário de Notícias.

Já o coronel Matos Gomes, um dos Capitães de Abril e companheiro de Marcelino da Mata na Guiné, entre 1972 e 1974, recorda o camarada como um autêntico herói da Guerra Colonial, apelidando-o de “corajoso, competente, agressivo e inteligente”. “Marcelino da Mata soube sempre de que lado estava e porque estava: sempre se considerou português e eu também o considerei sempre assim”, disse à Lusa. Uma posição que Nuno Melo subscreve, relembrando que o major, quando chegou a Portugal em 1975, foi “agredido selvaticamente e com danos irreversíveis por militantes de extrema-esquerda, ligados ao MRPP”. Só nesta franja do espectro político, do ponto de vista do eurodeputado, é que Marcelino da Mata não reúne consenso como herói nacional.

Mas houve uma opinião, no meio disto tudo, que se sobrepôs a todos as outras e concentrou, em si, tanto a atenção mediática, como social. Em fevereiro deste ano, uma petição pública a pedir a deportação de Mamadou Ba surgiu na Internet, após o ativista ter criticado Marcelino da Mata e o voto de pesar aprovado na Assembleia da República. A petição conta já com mais de 31 mil assinaturas – o que ultrapassa o limite mínimo de 10 mil, aprovado o ano passado, por PS e PSD, para que seja debatida em plenário.

No Twitter, o dirigente da SOS Racismo não poupou nas palavras, nem as tentou revestir de veludo para causarem menos polémica. “Marcelino da Mata é um criminoso de guerra que não merece respeito nenhum”, escreveu, antes de ter criticado o CDS por querer que se decretasse um luto nacional por um “sanguinário”, como apelidou o major.

Francisco Rodrigues dos Santos, presidente do CDS-PP, insurgiu-se rapidamente, acusando Mamadou Ba, nomeado pelo Governo para o Grupo de Trabalho para a Prevenção e o Combate ao Racismo e à Discriminação, de “usar o ódio e preconceito para ter existência política”. E, por isso, exigiu a “saída imediata” do dirigente da SOS Racismo desse mesmo grupo de trabalho, acusando-o inclusivamente de racismo. O Chega de André Ventura reforçou esta posição antagónica ao apresentar queixa à Procuradoria-Geral da República, propondo uma alteração à Lei da Nacionalidade em que passe a haver “um conjunto de situações em que tem lugar a perda de nacionalidade portuguesa”.

As reações não representam uma surpresa para Mamadou Ba. Quando, por exemplo, Vasco Lourenço ou Ascenso Simões criticaram a figura de Marcelino da Mata, não surgiram petições ou pedidos de retirada de nacionalidade por “ofensa à memória de pessoa falecida”, o que o ativista antirracista justifica pela sua cor de pele. “Tantos brancos disseram pior do que eu já disse e nunca lhes moveram uma petição para os expulsar de Portugal. A petição diz no fim ‘para que sirva de exemplo’. Exemplo de quê? Para que uma pessoa racializada nunca mais use da palavra no espaço público?”, questiona na mesma entrevista à TVI24.

Para Julião Soares Sousa, especializado na área de Colonialismo, Anticolonialismo e a Identidade Nacional, “não é necessário que haja consensos sobre a figura”. “O mais importante é que essas opiniões divergentes se respeitem na sua diversidade”, afirma ao Diário de Notícias. No entanto, Mamadou não tem dúvidas sobre a “índole racista” da petição.

Derrubar é descolonizar?

Ascenso Simões sugeriu derrubar o “mamarracho” do Padrão dos Descobrimentos. Fotografia: Filipe Amorim/Observador

O dirigente do SOS Racismo preconiza um longo caminho para o combate do racismo estrutural que o país enfrenta. No entanto, reconhece que a luta não tem sido feita da melhor forma, dando como exemplo a tentativa de derrube dos monumentos ou símbolos que carregam em si uma celebração do passado colonial. “A lista [de monumentos] seria infindável”, de acordo com Mamadou Ba, de “um tempo que já passou e não orgulha ninguém”.

A relevância da questão chegou importada de outros países a Portugal no ano passado, mas não com tanta força. O máximo que se verificou foi a vandalização da estátua do Padre António Vieira, em Lisboa, com um graffiti vermelho que adornou, da noite para o dia, a figura com a palavra “descoloniza”. Mesmo assim, esta não foi a primeira vez que se discutiu homenagens ao período colonial no país.

Em 2014, a Câmara de Lisboa anunciou que as obras no jardim da Praça do Império não previam a manutenção dos brasões das ex-colónias portuguesas, aí colocados por ocasião da Exposição do Mundo Português, que pretendia celebrar os Descobrimentos, inserido no discurso patriota do Estado Novo.

Várias acusações de revisionismo histórico apareceram na altura e o assunto arrastou-se até 2016, quando o concurso público vencedor para as obras na Praça do Império não previa a manutenção dos brasões, o que fez com que o tema ganhasse, de novo, fôlego. Repetiram-se os argumentos e as discussões andarem em círculo durante outros 5 anos, quando, no início de 2021, o jornal Público noticiou que as obras na Praça do Império começariam em breve.

“Os florões são (…) uma invenção tardia semelhante ao mamarracho do Padrão dos Descobrimentos, são a eleição da história privativa que o Estado Novo fabricou, não têm qualquer sentido no tempo de hoje”, defende Ascenso Simões, deputado do Partido Socialista.

A petição foi, novamente, o meio usado para combater a “destruição do património histórico” de que os portugueses não se deviam envergonhar. À data da criação, o principal signatário da petição “Contra o apagamento dos brasões da Praça do Império”, era o presidente da Nova Portugalidade, Rafael Pinto Borges, um movimento normalmente associado à extrema-direita patriótica.

Para além de ex-ministros e presidentes da Câmara, a petição contou com o apoio informal de dois antigos Presidentes da República, Ramalho Eanes e Aníbal Cavaco Silva. “A Praça do Império é, toda ela, uma homenagem à gesta dos Descobrimentos, feito de que os Portugueses se devem orgulhar. Portugal soube manter uma amizade sólida com os países de expressão portuguesa, baseada no respeito mútuo e numa cooperação continuamente aprofundada”, afirmou o antigo líder do PSD, numa nota enviada à Nova Portugalidade.

Neste momento, a petição conta com mais de 14 mil assinaturas, o que a obriga, também, a ser discutida em Assembleia da República. No entanto, a Câmara de Lisboa anunciou que se encontra disponível para “trabalhar numa solução” que compatibilize o projeto de reabilitação da Praça do Império com os brasões das ex-colónias. Fernando Medina, presidente da Câmara de Lisboa, afirmou, no final de fevereiro, que o diálogo com os mandatários da petição tinha sido “muito importante e estimulante”, depois de ter referido, no início do ano, que os brasões já não existiam há décadas naquele local, porque as composições florais de que são feitos estão desgastadas desde os “anos 70 ou 80”.

Para Ascenso Simões, colega de partido de Medina, os florões são uma “eleição da história privativa que o Estado Novo fabricou”, não tendo qualquer sentido “no tempo de hoje por não serem elemento arquitetónico relevante, por não caberem na construção de uma cidade que se quer inovadora e aberta a todas as sociedades e origens”, ao que adiciona ainda o “mamarracho” do Padrão dos Descobrimentos.

A emblemática nau à flor do Tejo foi engolida por uma onda de polémica, que António Barreto, sociólogo e escritor, considera, desde logo, um absurdo. Faz parte dos signatários da petição contra a destruição dos brasões na Praça do Império por uma razão muito simples: “são coisas que fazem parte da nossa identidade”, afirma ao Diário de Notícias. O também antigo ministro assume que “durante cem anos falava-se da escravatura como uma vantagem, com orgulho, e é verdade que a escravatura não merece o menor orgulho”, mas considera que “toda esta conversa em Portugal hoje sobre o racismo, o perdão, a restituição do que os portugueses terão saqueado no mundo” é contraproducente. “Há este universo de abdicação da História, da sua negação, quando devia haver era um enorme esforço de fazer cada vez mais História e mais rigorosa”, conclui.

Artigo da autoria de Ricardo Silva. Revisto por Pedro Valente Lima 

Este artigo é da total responsabilidade da APA – Academia de Política Apartidária