Ciência no Grande Ecrã
Lost na Fronteira da Ciência e da Imaginação

Apesar de Lost explorar fenómenos aparentemente sobrenaturais, a premissa de uma ilha isolada com propriedades físicas e biológicas extraordinárias oferece ao espectador uma oportunidade única de explorar conceitos científicos aplicados em contextos extremos.
Sinopse
Quando estreou em 2004, Lost tornou-se rapidamente num fenómeno global, marcando uma nova era da televisão ao combinar drama, mistério e ficção científica. Criada por J.J. Abrams, Damon Lindelof e Jeffrey Lieber, a série centra-se nos sobreviventes do voo Oceanic 815, que se despenha numa ilha remota do Pacífico. Inicialmente, a narrativa foca-se na luta pela sobrevivência, na escassez de recursos e nas tensões entre os sobreviventes, mas expande-se gradualmente para explorar fenómenos aparentemente inexplicáveis, enigmas científicos e elementos sobrenaturais.
A história articula-se em várias camadas temporais, alternando entre o presente na ilha e flashbacks que revelam o passado dos protagonistas. Posteriormente, a narrativa introduz flash-forwards e flash-sideways, expandindo a cronologia para explorar futuros alternativos e desfechos complexos das personagens, aprofundando temas de destino, livre-arbítrio e identidade.
A própria ilha assume um papel central, apresentando fenómenos que desafiam a lógica, como curas inexplicáveis, anomalias temporais e campos magnéticos extremos. A Iniciativa Dharma, uma organização científica secreta ativa nos anos 1970, contribui para a mitologia da série, com múltiplas estações de investigação dedicadas a estudar as propriedades da ilha. Estes elementos permitem interligar eventos passados e presentes, fornecendo uma explicação científica parcial para alguns mistérios da ilha, embora muitas situações mantenham um carácter especulativo e ficcional.
Ao longo das seis temporadas, Lost aborda questões complexas como sobrevivência, moralidade, ciência versus fé, e relações humanas sob circunstâncias extremas que, em combinação com a narrativa não-linear conferiram à série um estatuto icónico na cultura popular, estabelecendo novos padrões para a televisão contemporânea.
Onde a Ciência Conhece a Ficção
A série Lost mistura diretamente ficção e ciência ao criar a Iniciativa Dharma e as suas estações (Swan, Orchid, Hydra, Pearl, Flame, Looking Glass, entre outras) para estudar fenómenos como eletromagnetismo, comportamento humano, biologia e até manipulação do tempo. Muitas destas ideias partem de factos científicos reais, mas são amplificadas até ao fantástico para servir a narrativa.
A estação Swan surge como elemento central da primeira temporada após a descoberta de uma escotilha enterrada. Dentro desta, Desmond Hume cumpriu a sua função: carregou periodicamente num botão durante anos para evitar uma suposta catástrofe eletromagnética. No entanto, quando os sobreviventes do voo Oceanic 815 conseguiram abrir a escotilha, instalou-se um dilema existencial entre a obediência cega a um protocolo ou a sua recusa racional.
Estação Swan. Fonte: Christian Høkaas
Apesar da estação ter sido construída sobre uma anomalia eletromagnética resultante de perfuração da crosta, de um ponto de vista científico, tais fenómenos não apresentam magnitude suficiente para justificar a necessidade de descargas periódicas para estabilização do sistema, tal como apresentado na narrativa. Como tal, a extrapolação feita em Lost aproxima-se mais de uma construção fictícia do que de uma hipótese geofísica viável.
Encontram-se, não obstante, elementos paralelos com plausibilidade em estudos sobre campos magnéticos intensos e efeitos sobre tecidos biológicos. A exposição a campos eletromagnéticos de alta intensidade ou prolongada pode alterar a polarização da membrana e aumentar a excitabilidade neuronal, levando a danos celulares e à perda de função cerebral, como no hipocampo e nos neurónios de ratos. Adicionalmente, trabalhos com operadores de centrais elétricas e pilotos expostos a radiação eletromagnética de alta intensidade relataram sintomas como tonturas, náuseas, alterações cognitivas e arritmias, evidenciando efeitos fisiológicos reais que podem ser comparados, de forma conceptual, à tensão experienciada por Desmond.
A manipulação espaço-temporal constitui outra dimensão das experiências de Desmond, que manifesta episódios de consciência deslocada no tempo interpretados como visões premonitórias. Alterações subjetivas na perceção temporal podem ocorrer em fenómenos neurológicos reais, como epilepsia do lobo temporal, mas não correspondem a viagens temporais objetivas. Alguns fãs sugerem que o efeito Casimir poderia explicar estas anomalias, mas, cientificamente, este ocorre apenas em escalas nanométricas e não tem relevância para os campos eletromagnéticos de grande escala apresentados em Lost.
O efeito Casimir descreve a atração entre superfícies próximas devido a flutuações quânticas do vácuo. Hipoteticamente, os fãs de Lost sugerem que este efeito poderia criar forças capazes de estabilizar anomalias espaço-temporais na ilha. Fonte: WikiCommons
Em Lost, a exposição contínua a campos eletromagnéticos intensos resulta em abortos espontâneos no terceiro trimestre e risco de morte materna e fetal. Na realidade, a radiação ionizante é reconhecida como um risco reprodutivo. Quando os órgãos reprodutivos recebem doses elevadas, podem ocorrer danos à fertilidade tanto em homens como em mulheres. A exposição a radiação ionizante durante a gravidez tem sido associada a abortos espontâneos, baixo peso ao nascer, malformações congénitas e outros problemas reprodutivos. Em contraste, a exposição contínua a campos eletromagnéticos não ionizantes, como os apresentados na série, não apresenta evidência científica consistente de causar complicações gestacionais. Enquanto os efeitos adversos da radiação ionizante são bem documentados, os campos eletromagnéticos de baixa intensidade permanecem, de acordo com a Comissão Internacional de Proteção Contra Radiações Não Ionizantes, dentro de limites de segurança que não comprometem a gravidez ou a fertilidade.
A estação Looking Glass, localizada no fundo do oceano, funciona como centro de interceção de comunicações. A dificuldade representada na transmissão de sinais de rádio em meio subaquático é cientificamente fidedigna, uma vez que a elevada condutividade da água do mar provoca forte atenuação das ondas eletromagnéticas de alta frequência, restringindo a comunicação a frequências extremamente baixas, utilizadas em submarinos militares.
A estação Hydra permitiu a abordagem de questões ecológicas através da introdução de espécies exóticas, como ursos polares em ambiente tropical por parta da iniciativa Dharma. Embora a biogeografia insular estude amplamente os impactos negativos da introdução de espécies não nativas, a adaptação de um mamífero ártico a um clima tropical é biologicamente improvável. Espécies como o urso polar estão adaptadas a condições de gelo marinho e baixas temperaturas, e alterações rápidas no seu habitat, como a perda de gelo ou aumento da temperatura, já se demonstrou que reduzem a sua sobrevivência e sucesso reprodutivo, obrigando-os a gastar mais energia para se deslocar e caçar. Assim, a presença de um mamífero ártico na ilha funciona como um artifício narrativo, reforçando o carácter extraordinário da ilha.
Para além das estações da iniciativa Dharma, existem outros eixos narrativos de destaque, nomeadamente a regeneração biológica, exemplificada pela recuperação da mobilidade de John Locke, que era paraplégico antes do acidente, e da remissão espontânea do cancro de Rose Nadler. Enquanto salamandras e axolotes exibem regeneração completa de membros, regulada por cascatas de fatores de crescimento, bioeletricidade e remodelação imunológica, em humanos a regeneração está restrita a tecidos específicos, como o fígado e, em crianças, a ponta dos dedos. Realisticamente, a cura de John Locke e de Rose Nadler carece de plausibilidade biomédica, funcionando apenas como metáfora da fé que as personagens tinham nas propriedades regenerativas da ilha.
John Locke demonstra a recuperação milagrosa da sua mobilidade após o acidente do Oceanic 815, simbolizando as propriedades especiais da ilha. Fonte: ABC
Lost demonstra como a ficção pode explorar conceitos científicos de forma criativa, misturando realidade e especulação para construir uma narrativa envolvente. Embora muitos fenómenos apresentados, como campos eletromagnéticos extremos, manipulação espaço-temporal ou regeneração biológica, não sejam plausíveis à luz do conhecimento científico atual, a série consegue despertar curiosidade sobre física, biologia e neurociência.
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Artigo redigido por Joana Silva. Revisto por Ana Luísa Silva.
