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Cultura

REINVENÇÃO E ALUCINAÇÃO NO ÚLTIMO DIA DO PRIMAVERA

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O Porto recebeu o último dia do NOS Primavera Sound. A abrir, às 17 horas, Núria Graham, a catalã de 21 anos com três álbuns editados. Pouco depois, no palco principal, os portugueses Evols davam as honras ao cenário que receberia o cabeça de cartaz deste dia, Aphex Twin. Ao mesmo tempo, no Palco., sob um sol que fazia os festivaleiros descalçarem o que tivessem e despir as camisolas, os Songhoy Blues, do Mali, puseram a dançar quem os assistia, em forma de aquecimento, ao som do blues e do rock.

Às 18h30, o Palco Super Bock recebia um dos momentos do dia, Elza Soares. Com um anfiteatro natural cheio, a brasileira de quase 80 anos afirmava que ia ser “grande festa, amigos”. Não desapontou. Sentada num trono centrado e elevado no palco, vestindo a cor preta, como se de uma viúva se tratasse. Ela veio reinventar o samba e a música brasileira, misturando este estilo tradicional com eletrónica e algum experimentalismo. Com forte teor interventivo, dizia ao microfone, lá no alto do seu trono, em repetição, “Eu sou negra”. Contra o preconceito acerca da mulher e da transexualidade e contra a violação, incentivava o público a “denunciar” e às mulheres para não sofrerem caladas. Dizia ainda que “gemer, só de prazer”, arrebatando com “Pra Fuder”. Num concerto onde se podia fascinar com aqueles ritmos e autenticidade, Elza Soares oferecia mais e mais, com energia e vontade transcendentes à sua idade. Tempo houve de cantar os parabéns a Portugal. Sem dúvida, um espetáculo que ficará na memória de quem viveu a revolução do samba.

Para quem não queria assistir a esta mulata brasileira, os Wand, norte-americanos, tocavam no Palco.. Com membros da banda de Ty Segall, explodiam garage com os pedais de fuzz, tão queridos por entre estes músicos.

The Growlers, com o sol quase a pôr-se no Parque da Cidade, com uma plateia fiel, mostravam o seu encanto através de fortes guitarras e da voz rouca de Brooks Nielsen.

Shellac, daí a pouco, num Palco. sem sol, tocavam um rock/punk/hardcore cru. Malhas de guitarra ácidas e frias, baixo violentamente palhetado e bateria poderosa; eis o que a banda residente do festival veio mostrar. Segui-se Sampha, o “Black Messiah”, numa mistura de soul contemporâneo e hip hop.

Às 22 horas uma decisão havia a ser tomada. Death Grips ou Metronomy? Enquanto no palco principal os britânicos tocavam as suas canções, como The Look e Reservoir, entoadas de cor por muitos, chegando o vocalista até a dizer que tocava num dos melhores sítios por onde já passou, os Death Grips subiam outra vez a temperatura do Palco.. O trio californiano, com MC Ride a front man, deu um concerto de uma hora ininterrupta. Incrível a energia daqueles três que explodiam um caos mais do que frenético, com ritmos de bateria inconstantes, vozes e gritos raivosos e samples vorazes. O público não estava quieto. Assim foi durante uma hora, sem paragens. Mesmo após o concerto, onde se passaram músicas conhecidas e se cantava em voz alta sem medo de ser ouvido, as pernas ainda mexiam, tão grande foi o espetáculo.

Weyes Blood, a começar ao mesmo tempo que os anteriores, no Palco Pitchfork, tocava, na sua voz harmoniosa, um folk de encher os ouvidos dos presentes. Seguia-se Japandroids no Palco Super Bock. A banda canadiana, composta apenas por dois elementos e considerada por alguns estar no top 5 das bandas rock do século XXI, deu um concerto de distorções, batidas e cheio de eletricidade. Os fãs deliciaram-se; para outros, apenas um tempo de espera para o que seguiria, achando o concerto “mais do mesmo”, no que toca ao rock.

Aphex Twin, ei-lo. O enfant terrible da música eletrónica, o grande nome do último dia. Perante uma plateia de muitas idades e estilos diferentes, o britânico dava um espetáculo de som e luz que muitos ainda hoje estão a tentar entender o que foi aquilo. Escondido nos ecrãs em seu redor que mostravam imagem alteradas do público, dele ou de figuras da vida portuguesa, em forma de memes, mandava brotar das colunas graves que faziam estremecer os tecidos corporais de extremo a extremo. Alguns em formato rave, outros em introspeção e outras coisas inexplicáveis. Com construções sonoras caóticas, num crescendo de batidas e ritmos delirantes, os ecrãs passavam imagens alucinogénicas de um Aphex Twin em modo demónio a invadir as faces do público em tempo real, a surgir por todo o lado; um espetáculo exímio de lazers, que pareciam cordas palpáveis até ao infinito, formando nuvens irreais. Aphex Twin veio ao Porto construir de novo a música eletrónica. Utilizando inúmeros estilos deste género como base, o demónio destes aparelhos criava delírios e alucinações sonoras e corporais nas pessoas hipnotizadas que o assistiam, ora de olhos abertos focando Richard David James lá ao fundo ou cá ao perto, ora de olhos fechados numa dimensão desconhecida. Tudo foi estímulo, experiência, sentidos, vibrações, delírio. Aphex Twin abriu-nos a porta para o inferno. A forma como manipulou a música eletrónica, quase construída analogicamente, dominando a maquinaria, foi a mote para o dúvida que permaneceu após Aphex Twin. Ninguém sabe o que se passou durante aquelas duas horas. No fim, o cheiro a mar e a maresia por entre estes e aqueles.

A noite seguiu com o fim do concerto de Black Angels no Palco. e com Tycho, Bicep e Marc Piñol a transformarem o Palco Pitchfork numa pista de dança.

O NOS Primavera Sound assim terminou, numa das edições mais concorridas, com uma média de 30 mil espetadores diários. A organização afirma não querer ultrapassar esse número na próxima edição, marcada para 7, 8 e 9 de junho, no mesmo sítio, à mesma hora.

Foi concertos e amigos e aplausos e encontros e memórias, como inscrito nos copos que ocupavam as mãos destes seres humanos.