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Cultura

ALICE NO PALCO DAS MARAVILHAS

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Mesmo já conhecendo de trás para a frente e de frente para trás a criação de Lewis Carroll (será que ainda há gente que se atreve a não conhecer?), ficamos absolutamente encantados e surpreendidos com os 90 minutos vividos no País das Maravilhas. Depois de uma temporada bem-sucedida no Teatro Nacional D. Maria II, a viagem de Alice chegou a 30 de janeiro ao palco – sempre bonito e imponente – do Teatro Nacional São João. E, na noite passada, a primeira de fevereiro, o público – ainda absorvido pelo surreal e absurdo do espetáculo – teve direito a uma conversa transparente e cómica com os artistas e criativos.

Ainda antes de as luzes se apagarem, o público – crianças com pais, jovens com amigos, amantes de teatro solitários ou grupos de adultos com vontade de recuar à criancice – concordavam com o que Maria João Luís, co-encenadora juntamente com Ricardo Neves-Neves, afirma na folha de sala: “a [minha] primeira memória [deste conto] é da estranheza daquilo. E da sensação de que aquele livro contava mais do que aquela história”. Tal e qual, comentava-se na plateia. Mas o que raio é que vai sair daqui? Entre risos, rememorações joviais e expetativas, a cortina abriu.

Em cena, surgem várias Alices. Todas loiras, todas vestidas de igual modo, e todas a cantar em uníssono uma canção esquisita, muito rápida, com esquemas rimáticos difíceis de acompanhar. Um ovo gigante surge do teto. Os músicos da orquestra estão no fundo do palco. A luz é pouco intensa e o ambiente pode ser considerado sinistro – ou, talvez, maravilhosamente nonsense. O som é distinto, a imagem é poderosa. Ora, vamos lá, que isto vai ser bom – sabemos de imediato.

Só com o palco já deserto é que aparece Alice (Beatriz Frazão), muito espantada, atrás do Coelho falante (Pedro Lacerda), e dá-lhe aquele valente pontapé no rabo para ele entrar na toca. E ela segue-o. E nós vamos caindo com ela. Não importa se caímos para um mundo irreal, importa que caímos para um mundo maravilhoso.

Deliciados pelos diálogos, pelos jogos de palavras, pelos figurinos que tornam pessoas em animais, pela intensidade das personagens, pelo ritmo que a história impõe ou pelas indagações sobre o tempo (ou a falta dele), o mundo dos humanos e a importância de o questionar, verdadeiramente deliramos com os cenários. Para além do cenário mais tradicional de floresta, com a árvore, a toca e casas encantadas, vemos uma tela enormíssima, espelhada, a projetar o vídeo que dá cenário aos atores, que, de forma distinta e inovadora, se aventuram no chão.

No aplauso final, é impossível tirar os olhos da querida e talentosa Alice – agora já na pele de Beatriz Frazão. Com tenros quinze anos, é protagonista nos Teatros Nacionais e fá-lo como gente grande, com uma verdade muito própria. Afastando-se da versão inocente e ingénua da personagem, Beatriz torna Alice numa questionadora atrevida e espevitada, numa orgulhosa criança destemida “que não teme a morte nem a tolice”, e – ainda que criada por Carroll na Inglaterra Vitoriana – tem muito a ensinar à criançada de agora, tão menos corajosa e imaginativa.

No salão nobre, os atores, músicos, criativos e técnicos deixaram a nu o processo de construção desta obra de arte. Revelaram que a vontade comum de fazer renascer Alice floriu em 2015 e, a partir daí, a escrita da peça arrancou. A linha da espetáculo acabou por ser “contar a história da Alice no País das Maravilhas mas através de diálogos da Alice do Outro Lado do Espelho”. E, revela Ricardo Neves-Neves, entre risos, que a fusão foi um processo demorado e divertido, mas que há também momentos novos, criados de raiz, “por necessidade ou, claro, porque me apeteceu escrever”, tornando o nonsense – que tanto mexe com ele – ainda mais sofisticado e desconexo.

Discutiu-se a comunhão musical entre o texto e a orquestra, se o processo precedeu ou sucedeu o trabalho de atores, e elogiou-se o inegável poder que a música – ao vivo e em palco – tem no público. Interrogou-se como se faz uma encenação a dois e que divergências enfrentaram, e concluiu-se que, simplesmente, se complementam, mais do que discordam. Ricardo Neves-Neves desvenda que “numa das últimas noites, deitei-me no chão, na última fila, e ouvi o espetáculo todo, ali. A mim, o lado sonoro do teatro chega-me. Mas a Maria João procura a vertente estética. Senta-se do lado do espectador e vê. Vê.” De facto, tudo foi bem equilibrado e inteligentemente decidido.

Alice termina o espetáculo enroscada no chão, talvez a adormecer ou já a dormir, talvez a descansar só uns segundos para ter força de continuar a sua vida agitada naquele palco-mundo tão não-quotidiano, colorido, livre e metamórfico. Alice e o seu País das Maravilhas não são só história e cenário para crianças. Muito pelo contrário! Talvez só comecemos a entender o tal outro lado da história quando já não o somos, ou achamos já não o ser. Viva o teatro português e estas criações – não fora da caixa, mas sem caixa nenhuma. Até 10 de fevereiro, aproveitemos a oportunidade de entrar na sala para recuar à pequenice e sair, feliz, depois de pensar, rir e ainda crescer um pedaço. “Absolutamente extraordinário”, diz Alice, logo quando entra em cena. E é mesmo.