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Cultura

ERA UM VEZ RUY BELO, ANTONIONI, RENOIR…

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Familiares e amigos do poeta Ruy Belo encheram o grande auditório do Teatro Municipal de Vila do Conde para assistir à projeção de Ruy Belo, Era uma vez, documentário da autoria de Fernando Centeio e Nuno Costa Santos. Sem grande relevo estético ou cinematográfico, assumindo claramente propósitos historicistas e didáticos, esse documentário não deixa de ser uma bela homenagem a uma das figuras maiores da poesia portuguesa do século XX. Essa sessão especial do “Curtas” apresentada pelos realizadores e por Teresa Belo, viúva do poeta, contou igualmente com a leitura de um poema dedicado a Vila do Conde, cidade de onde esta é originária, por Luís Miguel Sintra.

Inserido no programa especial “Aventura Antonioni”, a projeção de Il Deserto Rosso (Deserto Vermelho) obteve igualmente as honras do público do “Curtas”.

Terá Il Deserto Rosso a mesma relevância cinematográfica que Sunrise de F.W. Murnau? Ambos fazem sobressair através de recursos formais revolucionários a beleza de histórias que, em si, não possuam grande complexidade narrativa. Se Sunrise marca, de certo modo, o apogeu de uma poética cromática, e isso em 1928, ano do advento do sonoro, Il Deserto Rosso de 1964, primeiro filme a cores de Antonioni numa altura em que o preto e branco era tido como um anacronismo, como que faz eco a essa poética. Antonioni que regressou à pintura aquando da realização deste filme, recorre aos tons pastéis e a jogos de focagem/desfocagem para dar a ver ao espetador o que Giulana, a protagonista de Il Deserto Rosso, vê, ou não consegue ver, a realidade, o real. Perturbada, afetada por uma tentativa de suicídio que não é tão causa quanto fim dessa mesma perturbação, Giulana vive num mundo cíclico, existencialmente acinzentado e onde as cores vivas, a vida, só é percetível no reflexo de um sol inexistente nas manchas de petróleo que cargueiros abandonam antes de zarpar para longe do mundo dela.

Num dia em que as sessões de competição estiveram nitidamente à margem do programa principal do “Curtas”, é necessário destacar duas curtas metragens que estiveram inseridas na sessão de competição internacional: Playhouse of A. e Peine Perdue.

O plano sobre o qual se abre Playhouse of A., documentário de Benjamin Schindler (Alemanha, 2013, 30’38”), não só enuncia uma temática quanto uma convenção de leitura: «Era uma vez» o mito norte-americano. Um teatro ao ar livre, palco e plateia vazias, algures nos Estados Unidos. A industria do espetáculo made in USA afetou e formatou de tal modo o nosso imaginário acerca dos Estados Unidos que esse se permutou realidade. O mega-teatro, o mega-drama aristotélico que são os Estados Unidos, cessou de ser o da verosimilhança, passou a ser a verdade. Benjamin Schindler percorre a nação-espetáculo à procura das fontes, dos anti-géneros, dos índios, enfim, dos resquícios de uma realidade que fomentou o nosso imaginário. Através de uma montagem cuidada e inteligente, da justaposição de planos onde figuram a realidade e a realidade-virtual, Benjamin Schindler não tão procura perceber quanto inverter, e assim restituir, o elo mimético entre o imaginário do que são os Estados Unidos e aquilo que eles são, deixaram de ser ou nunca foram.

Foi com uma tímida salva de palmas que a plateia da Sala 2 do Teatro Municipal de Vila do Conde acolheu a curta metragem de Arthur Harary, Peine Perdue (França, 2013, 39’34”). Porém, esta curta metragem de Arthur Harary é um belo filme. Ela tem a qualidade de convocar dois tipos de reminiscências. A primeira é, por assim dizer, existencial: as indecisões de jovens que passam as férias deles à beira rio, indecisões amorosas e identitárias. Mas esses flirts de verão transcendem-se, e o rio, rio heraclítico, rio que só passa uma vez, adquire uma função simbólica incomparável. O segundo tipo de reminiscência que Peine Perdue convoca é cinematográfico, onde é nítida a influência, o dialogismo que Arthur Harary estabelece com um filme canónico do cinema francês e mundial: Partie de Campagne de Jean Renoir. Peine Perdue é um filme belo, poético, simbólico e existencialmente denso que não mereceu a devida atenção do público do “Curtas”. Mas, afinal, que tipo de público é que o “Curtas” acolhe?