Cultura
The Zone of Interest: Um filme sobre o presente
Após uma década de antecipação, Jonathan Glazer regressa aos cinemas com uma obra-prima que mais uma vez prova que é um dos melhores e mais originais artistas do século XXI. Com cinco nomeações para os Óscares, The Zone of Interest estreou nos cinemas portugueses no dia 19 de janeiro deste ano.
Em 1943, Rudolf Höss (Christian Friedel), o comandante do campo de concentração de Auschwitz, vive um quotidiano idílico numa casa ao lado do campo, juntamente com a sua mulher Hedwig (Sandra Hüller) e os seus cinco filhos.
Em 2014, Martin Amis publica o livro The Zone of Interest (A Zona de Interesse – nome usado pelos oficiais nazis para se referirem ao campo), um romance que detalha um caso amoroso entre um soldado nazi e a mulher do comandante de Auschwitz. Em 2023, Jonathan Glazer, realizador britânico do aclamado Under the Skin (2013), faz um muito antecipado retorno aos cinemas com uma adaptação desse livro.
Embora ambas as obras procurem representar a vida de Höss e da sua família durante os anos em que habitaram numa casa ao lado do maior e mais mortífero campo de extermínio do Holocausto, Amis e Glazer apresentam abordagens que diferem em mais do que o meio utilizado. No romance, o enredo central é fictício, sendo os protagonistas apenas versões inspiradas em Rudolf e Hedwig, apresentando até nomes diferentes. Enquanto no filme, Glazer opta por uma representação mais histórica daquele que era o quotidiano da família.
Com uma visão única e objetivos bem definidos, The Zone of Interest de Glazer surge como o resultado de anos de investigação intensa, tanto do próprio como por parte do designer de som Johnnie Burn e mesmo dos atores, com o intuito de representar com a maior fidelidade a vivência ao lado de Auschwitz. Desta forma, o filme mostra precisamente aquilo a que se compromete: uma caricatura crua e objetiva daquilo que era o dia a dia desta família, que primava por uma surpreendente banalidade, mantida independentemente do mórbido contexto em que decorria.
O filme inicia com a tela negra, seguida do título, e um novo regresso à escuridão com uma duração suficientemente extensa para inquietar o espetador. Um dos poucos momentos acompanhados pela presença da trilha sonora composta por Mica Levi, este período em que o filme deixa a plateia na escuridão pode ser interpretado de várias formas. Poucos terão sido os que se aventuraram numa sala de cinema para ver este filme sem saber do que se trata, e menos serão ainda os que não conhecem o Holocausto e as atrocidades cometidas no seu âmbito. Assim surge a teoria de que aqueles primeiros minutos são uma oportunidade para o público refletir e se mentalizar da seriedade do tema que está prestes a ser abordado no ecrã.
Mais interessante ainda será talvez o momento em que a escuridão é subitamente substituída pelo primeiro plano da família Höss, a fazer um picnic tranquilo à beira lago, que pode ser visto como uma espécie de “abrir de olhos” por parte da audiência, indicando que esta irá olhar para um episódio na história da humanidade que, embora abundante em relatos e representações, nunca foi percecionado desta forma.
The Zone of Interest é um filme de distâncias. A primeira será a distância temporal entre os acontecimentos representados e o presente. A segunda, e talvez a mais relevante, é a distância entre o que nos é mostrado e o que, propositadamente, não o é. O quotidiano burguês do qual a maior parte da ação se ocupa dá-se numa casa cujo belo jardim, tão cuidadosamente planeado por Hedwig, é limitado por um muro com arame farpado no seu topo – um vislumbre do campo de concentração. O caráter que o distingue de outros filmes sobre o Holocausto está nesta distância que Glazer cria entre ‘o crime e o criminoso’, nunca permitindo à audiência assistir àquilo a que está acostumada e, de certa forma, catarticamente anseia: o sofrimento das vítimas. Assim, através desta restrição visual imposta pelo realizador, este concretiza o que diz ser o seu principal objetivo da sua obra: mostrar as nossas semelhanças com os arquitetos destas atrocidades e não com as suas vítimas.
É possível ainda identificar uma terceira distância, provavelmente a mais chocante, a distância emocional. Ainda mais proeminente que o muro físico que pontua esta dicotomia antitética entre a realidade da casa Höss, com toda o seu conforto, e a realidade do campo de extermínio, pautada por uma rotina de massacre, é a indiferença a que somos forçados a observar por parte desta família.
Mas quem sabe mais importante que identificar estas distâncias, é entender como elas são ofuscadas. Com o objetivo de dar um ar moderno ao filme e de não esteticizar Auschwitz, apenas foi usada luz natural e luzes práticas (velas, lanternas, candeeiros…). Isto, aliado com um método de gravação que Glazer apelidou de “Big Brother em Auschwitz”, que consistiu em gravar com câmaras digitais da Sony cuidadosamente escondidas dentro e à volta da casa, contribuiu para concretizar o desejo do realizador de aproximar ao máximo a realidade daquela casa em 1943 à nossa realidade em 2024. Glazer afirma que o aspeto atual do filme intensifica esse confronto, uma vez que impede o espetador de procurar refúgio na distância temporal entre passado e presente.
No que toca ao contraste distância física – distância visual estabelecido no filme, este é magistralmente obliterado por um dos aspetos mais importantes desta obra: o som, sendo que o realizador não queria que as atrocidades do campo fossem vistas, apenas ouvidas. Assim, o designer de som Johnnie Burn investigou extensivamente Auschwitz, de modo a que a distância e os ecos dos sons fossem determinados com fiabilidade. Burn passou um ano a construir uma sonoplastia mesmo antes das filmagens começarem, incluindo sons de maquinaria industrial, de fornalhas, dos crematórios, de botas, de tiros e sons de dor humana, nomeadamente gritos. Denominado por muitos, incluindo o próprio Jonathan Glazer, como o “segundo filme”, é de facto o som que cria o ambiente mórbido e sombrio que nos acompanha durante todo o visionamento. O impacto da banalidade das ações da família Höss não seria o mesmo sem o som, que tão expressivamente pontua estes momentos e nos impede de esquecer o que se lhes avizinha.
Esta indiferença e falta de consciência que representa um dos atributos mais perturbadores do filme é, por vezes, interrompida em certas cenas. Logo no início assistimos a um momento em que Hedwig recebe um casaco de pelo que pertencia a uma prisioneira judia, dentro do qual ela encontra um batom. Nesta cena, a “Rainha de Auschwitz”, alcunha dada pelo marido da qual a mesma tanto se orgulha, tranca-se no quarto para experimentar estas novas aquisições, procedendo a retirar o batom imediatamente após o colocar, ações que, de certa forma, apontam para a consciência de que está a fazer algo que não é correto.
Como é de esperar com um tema destes, The Zone of Interest não foi um filme fácil de fazer. Como judeu, Jonathan Glazer explica que este foi um projeto bastante doloroso, com o qual, no entanto, não se conseguiu despegar. O mesmo diz que, apesar da opinião do seu pai, que preferia que este deixasse o passado apodrecer, ele não conseguia fazê-lo, afirmando que para ele esta história não estava no passado.
“This was the road I was going down and I couldn’t stop myself going down it, but at the same time I was ready to pull back from it at any moment. I almost wanted to hit a brick wall so I could turn around and say: ‘You know what? I tried and I can’t do it.’ I was almost willing that to happen.” – Jonathan Glazer
Glazer esteve mesmo para desistir do projeto várias vezes, dizendo, em conversas com o seu produtor, que não conseguia lidar com tamanha “escuridão”. Desta necessidade de um pouco de esperança e de um encontro com Alexandria, uma mulher que pertenceu à resistência polaca com apenas 12 anos, surge um dos momentos mais enigmáticos e artisticamente marcantes do filme. Nesta cena completamente gravada com uma câmara de imagem térmica, vemos uma rapariga que durante a noite vai de bicicleta até às redondezas do campo e deixa maçãs nos locais de trabalho dos prisioneiros esfomeados, para que estes as encontrem no dia seguinte. Esta personagem, fortemente inspirada na própria Alexandria que forneceu a sua bicicleta e vestido para serem usados no filme, representa o único momento de luz numa obra repleta de desespero.
Lembro-me de aquando da estreia de Oppenheimer dizer que esse seria “o filme mais importante do ano”, pela forma como transportava do passado uma assustadora atualidade. Sendo assim, não tenho agora escolha senão deixar as palavras do galardoado realizador Alfonso Cuarón que intitulou The Zone of Interest como “o filme mais importante do século”.
Jonathan Glazer destaca-se assim mais uma vez, não só como um dos melhores realizadores do momento, mas também um dos artistas mais originais da atualidade. Esta que é a sua mais recente obra evoca as figuras do escritor Primo Levi, autor de “Se isto é um homem”, e da filósofa Hannah Arendt, conhecida pela sua cobertura do julgamento de Adolf Eichmann’s e pelo uso da frase “a banalidade do mal”, no modo como aponta para a assustadora normalidade de quem cometeu estes atos inumanos.
“Existem monstros, mas são poucos em número para serem realmente perigosos. Mais perigosos são os homens comuns, os funcionários prontos para acreditar e agir sem fazer perguntas.” – Primo Levi
O filme termina com um regresso à ominosa tela negra, mais uma vez acompanhada pela penetrante música de Mica Levi. E se a presença desta escuridão no início podia ser vista como um momento de reflexão, o mesmo pode ser dito aqui. Glazer afirma que este é um filme do presente e não do passado, desafiando-nos a sair da sala de cinema e, ao pensar em Auschwitz, pensar também em Gaza e na Ucrânia, e em tantos outros sítios no mundo onde massacre e destruição acontecem ininterruptamente.
De um modo morbidamente irónico, a evolução tecnológica dos últimos 100 anos, que nos permitiu encurtar tantas distâncias, é a mesma que nos separa cada vez mais. Assistimos todos os dias à humanidade no seu mais insensível. Seja através da televisão, da rádio, dos tablets ou de qualquer outro ecrã e altifalante, os sons e as imagens de guerra e sofrimento acompanham-nos todos os dias. The Zone of Interest procura assim confrontar o espetador com o seu quotidiano anestesiado, abundante tanto em informação como inação, e, mais do que desafiar-nos a reconhecer esta condição em que vivemos, desafia-nos a combatê-la e, dessa forma, a mudar.