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Cultura

A Metamorfose dos Pássaros e as memórias com que queremos voar

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É deveras surpreendente a forma sólida com que Catarina Vasconcelos conseguiu realizar a sua primeira longa-metragem, A Metamorfose dos Pássaros. Baseada na história da sua família, a realizadora explora a ligação à figura Mãe, a forma eterna da sua presença na vida de quem criou e, de modo mais geral, a conexão entre os vivos e os mortos. Ainda a meio do seu percurso de premiação, é já possível afirmar o entusiasmo com que o filme foi recebido pelos festivais, um pouco por todo o mundo.

Nascida em Lisboa a 1986, Catarina Vasconcelos foi estudante na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, no ISCTE (pós-graduação em Antropologia Visual) e em Londres no Royal College of Art (mestrado em Comunicação Visual). Foi também em Londres que, no ano 2014, realizou a sua primeira curta-metragem Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso, premiada em Paris como Melhor Curta-metragem Internacional, no Cinema du Réel. Em 2020, com o apoio do Instituto do Cinema e do Audiovisual, da RTP e da Fundação Calouste Gulbenkian, voltou ao cinema com A Metamorfose dos Pássaros, produzido por Pedro Duarte e Joana Gusmão, em estreia mundial no Festival de Cinema de Berlim (Berlinale), onde venceu o prémio FIPRESCI, na secção Encontros. Premiado no IndieLisboa com o Prémio do Público e o de Melhor Realizador, o filme foi nomeado para festivais de vários países e continentes, tendo alcançado a vitória em alguns deles. Recentemente, soubemos que o filme é candidato a representar Portugal na próxima edição dos Óscares.

Beatriz, ou Triz, como gostava de ser chamada, casa-se com Henrique, um marinheiro –casal de avós da narradora (e da realizadora). Este amor predestinado concebeu seis filhos, entre eles Jacinto, o mais velho – o Pai. Com tanta gente para criar e um marido que morava no mar em exercício de sua função, Beatriz viu nas plantas e nas árvores um guia para a vida. Morre subitamente. Partiu, deixando, nos que ficaram, a certeza de que, ao contrário da maioria das mães, seria agora uma árvore, onde os pássaros podem pousar e descansar do voo. Jacinto, acompanhado da sua mulher, é pai – nascimento ficcional da narradora e real da realizadora – mas tristemente, durante a adolescência da filha, a mulher de Jacinto falece. A jornada de uma vida desprovida do elemento materno – figura do porto-seguro, onde parece encontrar-se a resposta a todos os problemas, através de uma terna persistência – é assim partilhada por pai e filha.

Este filme é muito mais que uma história de um filho chamado Jacinto, que perde a mãe, Beatriz, e de uma filha que também perde a sua mãe. Este é um filme sobre as mães, que são a origem de tudo e que, tal como as árvores, existiram antes dos pássaros, os mesmos que nelas se apoiam para descansar e, então, retomar o percurso, a sua “metamorfose”. É esta bengala, este elemento constante de conforto que custa largar – que talvez nem seja preciso deixar. Não serão as nossas vidas a tarefa hercúlea de fazer cumprir a ternura materna? Não será antes a Existência uma supra-Mãe universal – Deus –? Reflexões consequentes de quem se abre à narrativa da dimensão da entidade Mãe. Podemos estender a reflexão à morte de todos e ao diálogo que procuramos manter com os mesmos. Uma conversa que escala o horizonte, pelo qual fala o nosso ser mais íntimo e profundo. Esta não é a metamorfose que queremos, é porém inevitável e transformadora.

Catarina Vasconcelos conseguiu criar um filme, em certo ponto, terapêutico, na medida em que nos sentimos como que a ler um romance de um autor mais sensível, Mia Couto por exemplo, ou um poema dos que apela à nossa afetividade. Cada palavra foi meticulosamente encaixada nas frases, sussurrada em tom sereno e apoiada no registo visual, também ele de qualidade. Um regozijo, um deleite.

Artigo da autoria de Bernardo Vasconcelos

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