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Cultura

“O NOSSO MUNDO É FEITO DESTES PEDAÇOS DE VIDA”

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Focos de luz são direcionados para o palco. Dois ecrãs laterais, que se assemelham a smartphones, são corridos por imagens de vários telejornais. Um ecrã superior que faz lembrar um tablet projeta um título. Duas personagens são deixadas a descoberto e o espectador é convidado a entrar naquela que seria a primeira de mais de cinquenta peças a serem exibidas durante este espetáculo.

São 115 minutos de estilhaços do quotidiano que passam tão fugazmente como a informação passa diante dos nossos olhos. Neles estão retratadas cenas individuais, independentes umas das outras, unidas pelo facto de todas exibirem como se processam as relações humanas na era digital. A superficialidade dos relacionamentos, reflexões filosóficas e dissensões familiares pautam estes pequenos momentos de vida.

Os cenários mudam continuamente, as personagens – treze atores bem conhecidos do público – também vão alternando. Inúmeros vídeos são projetados dos ecrãs laterais entre as peças, relacionando-se de alguma forma com o que havia sucedido na cena anterior ou com o que viria a suceder na subsequente. Segredo, erva, censo, decisão, psiquiatra, Deus, destino, maníaco, sono, terminal, sonho, depressão são apenas algumas das palavras exibidas no ecrã superior que dão título a cada uma das peças. Este dinamismo de imagens, acontecimentos em simultâneo, miscelânea de ideias e temas que se diluem de forma célere no tempo constituem um estímulo ao pensamento rápido e ao mesmo tempo incitam à reflexão de que é necessário parar para pensar.

“Quando tomo os remédios não tenho crises, mas é difícil obter a informação” é um dos retalhos de diálogo que revela a esquizofrenia e ânsia dos indivíduos em estar sempre conectados, sem se aperceberem que se perdem constantemente na saturação da realidade. “Temos muita informação” e devido a esse excesso de estímulo, perde-se a capacidade de comoção e a análise crítica da insanidade (“Ele não tem mais sentimentos do que um sapato”).

A desorientação no meio de uma sociedade caótica, imersa em cada vez mais dados, onde as circunstâncias mudam a cada minuto e que exige mais do que a perceção de cada um, é descrita numa das falas: “Eu sinto-me um bocado esquisita (…) aos tombos pela minha vida fora, mas sinto que estou a escolher.” A falta de comunicação, o estado de urgência permanente, a carência de afetividades são evidências comuns do dia-a-dia que estão representadas por um momento que faz lembrar a última ceia de Jesus com os seus apóstolos, em que os treze atores, ao invés de estabelecerem um diálogo entre si, comunicam por mensagens de telemóvel.

Quando o espetáculo se aproxima do fim, todos os artistas se reúnem para a última cena. Em cima, uma criança pequena começa a aparecer no ecrã. A criança está sentada no meio de um prado a experimentar mexer num tablet, porque, desde tenra idade, os indivíduos são estimulados a adaptar-se a um mundo cada vez mais complexo que não pára. O mundo de quem olha, mas não vê. De quem vê, mas não repara. De quem repara, mas não sente.

Como afirma a dramaturga britânica Caryl Churchill, “o nosso mundo é feito destes pedaços de vida”. Estes pedaços são retratos de uma sociedade exausta, muitas vezes sem tempo para se aperceber que não está a viver.

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