Connect with us

Artigo de Opinião

Eliades Ochoa no Porto

Published

on

 

No passado domingo, dia 23 de Março, o guitarrista cubano Eliades Ochoa atuou na Sala Suggia da Casa da Música, numa noite memorável de comunhão entre gerações e culturas distintas.

Eliades Ochoa: uma vida dedicada à música

Quarteto Pátria

Eliades Ochoa, guitarrista cubano da música “guajira” e “son”, nasce a 22 de Junho de 1946 na costa este de Santiago de Cuba. Músico desde os 6 anos, torna-se uma figura proeminente no panorama musical cubano quando em 1978 funda o “Quarteto Pátria” com 3 outros músicos: Emilia Gracia, Rigoberto Hechaverría, and Rey Caney. O quarteto torna-se uma referência na cultura cubana, devido à introdução do “son”, um estilo de canto e dança que combinava os ritmos e características da música espanhola, com elementos e instrumentos musicais cubanos e indígenas. Um sucesso na difusão da música tradicional, o grupo é visto como um símbolo da cultura e tradição cubana, sendo um dos mais influentes grupos musicais no país.

 

Imagem 1: Eliades Ochoa e o Quarteto Pátria

Buena Vista Social Club

O Início

No entanto, não seria até ao final dos anos 90 que Eliades Ochoa e a sua guitarra clássica ficariam imortalizadas na mente coletiva do público ao redor do globo, com o lançamento do projeto: “Buena Vista Social Club”. O nome, relativo a um clube cultural em Buena Vista, relembra o passado cubano. Um passado de segregação racial entre os “brancos” e os “afro-cubanos”. Um passado onde, da dor, luta e sofrimento, nasceu uma cultura musical riquíssima. Um pouco à semelhança do fado, a música cubana trata do passado, da saudade, da perda e dos amores distantes.

O projeto “Buena Vista Social Club”, numa parceria entre o cineasta Win Wenders e o guitarrista norte-americano Ry Cooder, dá o seu início em 1996. O objetivo era simples: reviver a música cubana. Ry Cooder, que desde criança ouvia cassetes dadas pelos país, com músicas como Guajira Guantanamera ou Dos Gardenias, era fascinado pela cultura cubana e as suas origens. No entanto, grande parte dos artistas que hoje conhecemos, como Compay Segundo ou Ihrahim Ferrer, há muito que tinham desaparecido da esfera pública. A sua influência fora do país era quase inexistente e, com o passar das décadas, também Cuba “seguiu em frente”, deixando esta brava discografia sujeita às peripécias do tempo. Então, Ry Cooder, juntamente com Juan de Marcos González, tentou concretizar algo inédito até à data: gravar um álbum com as lendas da música “son”.

Como imagina, entrar em contacto com indivíduos praticamente desaparecidos, ainda por cima na década de 90 e num país desprovido de tecnologia como Cuba, não foi tarefa fácil. Meses de “palavra-puxa-palavra” se fizerem até que os vários membros da nova banda cubana estivessem reunidos todos num estúdio de gravação.

 

Imagem 2: Buena Vista Social Club

O Projeto

Mas, refletindo um pouco a natureza do projeto, “Buena Vista Social Club” tinha a receita para o sucesso, e no filme galardoado de Win Wenders podemos perceber o porquê. Havia uma simplicidade, modéstia e, sobretudo, gosto inigualável pela música, em cada movimento e nota tocada pelos membros da banda. Nunca se tratou de sucesso, dinheiro ou até reconhecimento interna. Os “velhos” apenas se queriam divertir, tocar em conjunto e reviver a Cuba da sua juventude. E o elenco? Bem, as palavras falam por si: Compay Segundo, talvez o músico cubano mais conhecido de todos os tempos; Ihrahim Ferrer, um símbolo da humildade e qualidade do “bolero” de Havana; Ruben González, considerado por muitos o melhor pianista de música latina de sempre; Omara Portuondo, o místico anjo da música “son” … E claro, não só faziam parte os Afro-Cuban All Stars, uma renomeada e histórica orquestra cubana, como também o membro mais jovem da banda e melhor guitarrista cubano da atualidade. O sujeito deste artigo, Eliades Ochoa.

Com o lançamento do seu único álbum em 1997, “Buena Vista Social Club” e o filme de Win Wenders com o mesmo nome em 1999, o grupo tornou-se numa referência mundial. O álbum, que revivia os maiores êxitos de cada um dos envolvidos, vendeu quase 8 milhões de discos tornando-se o mais bem-sucedido disco de música cubana já gravado. Era uma verdadeira e definitiva antologia coletiva, com temas desde o final dos anos 40 até aos anos 80, tocadas com o melhor que a música cubana tinha a oferecer e dando a conhecer temas imortais como Chan Chan, El Quarto de Tula ou Viente Años. Ainda hoje é reconhecido como uma obra-prima da música, sendo ouvido pelas gerações mais jovens, como nós, e é a prova que uma cultura pode estar além das fronteiras do tempo. E o filme documentário, além de ser mais uma referência do grande realizador alemão, correu os melhores festivais de cinema do mundo, tendo ganho melhor documentário nos European Film Awards e sido nomeado para o Óscar de melhor documentário do ano 2000. Já os músicos, muitos deles octogenários, viram o conceito de “estrelato” pela primeira vez e, acima de tudo, o reconhecimento de uma vida e obra aos olhos do público internacional.

No entanto, a banda ainda tinha muito a oferecer. Nomeadamente, o lançamento de vários álbuns a solo com alguns dos seus artistas, como Omara Portuondo, Ibrahim Ferrer e Rubén González, álbuns que desde já aconselho a ouvir. O álbum de Rúben Gonzalez é para mim dos melhores álbuns alguma vez produzidos e como homenagem ao aniversário da sua morte, aconselho o leitor a dar-lhe uma hipótese.

Marcante e conclusivo deste capítulo, foi o concerto do grupo em Carnegie Hall em 1998. Numa primeira e, salvo erro, última visita aos Estados Unidos, o grupo apresentou ao país vizinho o seu projeto, num concerto memorável, e que felizmente foi lançado em CD pelo próprio Ry Cooder em 2008.

 

Imagem 3: Buena Vista Social Club em Carnegie Hall

Eliades Ochoa na Casa da Música

Memorável foi também o concerto de Eliades Ochoa no passado dia 23 de março. Digo, com firmeza, que foi das mais ricas experiências culturais que tive o privilégio de presenciar. E com experiência digo que Eliades Ochoa não deu um concerto; Eliades Ochoa mostrou uma vida e um povo em palco.

Confesso que quando comprei o bilhete geri bastante as minhas expectativas. Sempre tive um gosto particular pela música cubana, e em especial pelos Buena Vista Social Club. Então quando soube que um dos seus membros vinha ao Porto, não me foi difícil comprar o bilhete. Mas por outro lado, não só ele vinha com um grupo diferente, como sabia que ia dedicar parte considerável do tempo a músicas que eu particularmente não conhecia. Para não falar da sua idade: apesar de ser na altura o mais novo do grupo, tem hoje 78 anos.

Na apresentação de um novo álbum, Eliades Ochoa trouxe ao Porto a mais crua experiência “guajira”. Num típico quinteto cubano, tocou quase 2 horas, sem esquecer, todavia, músicas marcantes dos Buena Vista como Chan Chan, Candela ou El Carretero. Com uma “genica” de invejar a qualquer estudante, tocou a sua guitarra como se os “velhos” já desaparecidos lhe afinassem as cordas. Uma qualidade exímia, tanto das novas músicas como das mais antigas, que superou decerto as minhas expectativas.

Mas o mais tocante neste concerto, e aquilo que me faz escrever esta artigo, foi o ambiente. Nos vários concertos na Casa da Música que estive presente, a ilustre sala de concertos, conhecida pela sua solenidade e intimismo, sempre me senti rodeado pelo ambiente culto e formal que a estrutura e os seus trabalhadores de terno transpareciam. Pessoas sentadas, bem vestidas e com um ar refletivo e sapiente. Até certo ponto, o concerto deu-se desta forma. Tocava-se uma música, o público aplaudia em uníssono e o concerto continuava. Mas a energia, alegria e descontração dos amigos em palco, claramente contrastava com o semblante comedido da plateia.

 

Imagem 4: Concerto na Casa da Música

Por isso, a um terço do concerto, Eliades dirigiu-se ao público e disse que quem quisesse “bailar al son de la música”, não só poderia, como deveria fazê-lo.  Disse que podíamos andar à volta da sala, de nos abraçar e disfrutar do momento. Nesse momento, e com a música Vamos a Alegrar el Mundo, o público reagiu. Casais a dançar, a cantar, a alegria a fluir aos poucos pelos cantos da sala. A partir daí, o concerto foi outro. Como se num bar cubano, como se Buena Vista renascesse novamente e os bailes cubanos visitassem a cidade, as músicas foram correndo uma a seguir a outra, num espírito catártico que há muito não sentia.

O pianista, um claro descendente de Ruben Gonzalez e o seu estilo, era jovem e com uma enorme presença em palco. Além da magnífica prestação musical, presenciou também um momento caricato. Neste caso, na música Soy Guajiro, quando pediu a uma senhora da plateia para dançar com ele. Ela subiu ao palco e, numa personificação do ambiente vivido, dançaram durante quase 3 minutos.

Concluo, por isso, que deste concerto trago mais do que música cubana. Trago um momento onde me senti verdadeiramente livre, abraçado por uma vida tão desconhecida, como bela. A sua simplicidade, a alegria e o apreço pelo presente. Anteriormente disse que a música cubana se assemelha ao fado. Acredito que sim, os seus temas, os contextos e experiências, claramente são semelhantes. No entanto, enquanto o fado é triste, pesado e melancólico, o “son” e a música “guajira” olham a vida com agrado. Porque, afinal, qual o fim de nos lamentarmos com o passado, quando estamos no presente?

Aconselho o leitor a ouvir o álbum Guajiro de Eliades Ochoa e a sua obra nos Buena Vista Social Club, e faço votos de que, tal como eu, consiga ver a vida através dos seus olhos.

 

Imagem 5: Solo de Percussão

Continue Reading
Click to comment

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *