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Artigo de Opinião

AI – Pornografia Digital se Tornou Solução Numa Sociedade Cristã Idelológica?

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intura surrealista de Salvador Dalí com uma figura amarela central parecida com um rosto de perfil distorcido; dela emergem uma mulher com seios nus, um braço masculino, elementos florais, mecânicos e uma árvore seca, tudo sobre uma paisagem desértica sob um céu azul intenso.
Numa sociedade do desempenho, a obra surrealista do pintor espanhol segue repleta de imagens simbólicas que retratam corpos que desejam o gozo desse outro esvaziado de si | Imagem: "O Grande Masturbador", de Salvador Dali (SORA, IA)

Nos percursos de minhas inquietudes, cruzo com questões demasiadas, então esbarro em demandas ao flexionar temas que perpassam o meu objeto de estudo ao indagar comigo: por que a pornografia é uma solução numa sociedade estrutural-cristã que trata o sexo como ritual biológico reprodutivo ao mesmo tempo que repúdio o ato em si? 

A recente decisão da empresa canadense Aylo, proprietária de plataformas de difusão de conteúdos pornográficos como Pornhub, YouPorn e RedTube, de suspender o acesso a suas plataformas na França em protesto contra a nova lei de verificação de idade, levanta questões cruciais sobre o controle digital, a proteção de menores e a responsabilidade compartilhada entre governos, empresas e famílias.

Pornografia como solução e sintoma. Em uma sociedade estruturalmente cristã, que ainda regula os corpos a partir de um imaginário biológico reprodutivo e moralista do sexo, a pornografia emerge como recurso de omissão para um desvio permitido dessa grande demanda do desejo reprimido. Assim, a pornografia, nesse contexto, não é apenas um entretenimento; é um sintoma (re)mediado pelo vício. 

E como todo sistema sintomático, as fantasias correspondem às necessidades de se imaginar o coito fora dos limites impostos, mas na verdade acabam por reproduz violências ao cristalizar estigmas, esvaziando o sexo — enquanto ritual de sexualidade e prazer — de toda a sua subjetividade, tornando-o um produto técnico: “o imperativo neoliberal do desempenho, sexyness e fitness nivela o corpo, por fim, a um objeto funcional que deve ser otimizado” (HAN, A Expulsão do Outro).

Porque somos uma sociedade tão vulgar, expondo pornografia nas redes sociais, mas ignorando a sexualidade individual como emancipação da identidade e representação subjetiva do humano? Quais os limites de reprodução da nossa própria imagem sexual nas redes? 

Tudo À Mostra

Vivemos numa era paradoxal da hipervisibilidade: corpos nus circulam pelas redes, mas a sexualidade real — enquanto experiência afetiva e emancipadora — permanece oculta, envergonhada ou patologizada. A exposição tornou-se vulgar não pelo excesso de imagem, mas pela falta de significado. Nas redes sociais, a pornografia é gratuita e abundante, mas a educação sexual é escassa, e a liberdade erótica do indivíduo, cada vez mais rara. 

Nossos adolescentes aprendem sobre sexo não pelo toque, pela conversa ou pela descoberta de si, mas por meio de vídeos, memes, deepfakes e tendências que ensinam performance, mas não prazer. Falamos sobre pornografia, mas não sobre desejo. Apontamos a imoralidade, mas não assumimos nossa responsabilidade coletiva em educar afetos, limites e corpos. De quem é a culpa? Talvez não haja uma resposta simples — mas há, com certeza, um silêncio social que precisa ser quebrado a começar pela indagação: 

Como lidar com os avanços tecnológicos, nomeadamente a inteligência artificial que reproduz corpos e sexualiza nações? 

Tecnologias do Desejo: Inteligência Artificial, Deepfake e a Colonização dos Corpos

Psicotecnologia. A inteligência artificial aprendeu a desejar antes de saber sentir. As máquinas agora simulam gemidos, criam corpos que nunca existiram e reproduzem fantasias programadas por quem detém o código. Basta comandos para o cybercoito acontecer. Há modelos gerados por IA que são mais populares que pessoas reais — com curvas precisas, bocas carnudas e olhos submissos. São corpos a serviço de comandos algorítmicos, moldados à imagem de um desejo que não é neutro: é branco, colonial, patriarcal e submisso/a. 

Pior que isso: esses corpos digitais perpetuam violências reais. Recriam atrizes, influenciadoras, até desconhecidas, em contextos pornográficos sem consentimento. Em 2024, a manchete Deepfakes pornográficas de Taylor Swift preocupam Casa Brancaganhou o mundo ao denunciar a facilidade com que se espalham a fantasia do acesso irrestrito ao corpo do outro. 

O que acontece quando o nosso imaginário sexual é moldado por máquinas que só repetem os vícios do passado? O desejo digital é programado a partir de estereótipos. Mulheres asiáticas dóceis. Latinas fogosas. Africanas exóticas. É a pornografia colonial reconfigurada em pixels.

Isso porque a IA não é criativa — ela é reprodutiva. E o desejo, ao ser automatizado, perde nuance, afeto, improviso. Entramos numa era onde a masturbação é guiada por avatares que não existem, mas os traumas são reais. E somos nós quem criamos os roteiros a fim de sentir e vivenciar mais uma vez.

No pornô, todos os corpos se equivalem e se reduzem a partes sexuais intercambiáveis. Esvaziado de linguagem e narrativa, o corpo deixa de ser palco de sonhos ou sedução e se torna pura função. O pornô suprime o jogo, a aparência e a ilusão — elementos essenciais do desejo — impondo uma verdade nua e maquinal. Essa lógica se alinha ao imperativo neoliberal de desempenho e otimização, que transforma o corpo em um objeto funcional, sexualizado e disciplinado” (HAN, A Expulsão do Outro).

Com os avanços da inteligência artificial, essa dissociação se radicaliza: criam-se corpos irreais, sexualizam-se etnias, reforçam-se estereótipos coloniais. O desejo é manipulado por algoritmos, e a tecnologia se torna cúmplice de uma pornografia que não apenas representa, mas fabrica corpos e imaginários.

A Vulgaridade como Ruído: Pornografia Digital em Redes é Silêncio Sobre o Desejo

Estamos cercados por pornografia, mas continuamos analfabetos em desejo. Percorremos o feed e entre um meme e uma opinião política aparece um vídeo explícito, uma nude não solicitada, uma thread sobre prazer sem prazer. A internet transformou o sexo num espetáculo permanente, mas não necessariamente num espaço de liberdade. O que vemos é o ruído da vulgaridade, não a escuta do desejo.

Há uma diferença entre mostrar o corpo e expressar a sexualidade. A primeira virou tendência, estratégia de engajamento, ferramenta de marketing. A segunda continua sendo tabu. Fala-se de sexo, mas não de sentir. Mostrasse nudez, mas não se fala de intimidade. No fundo, temos mais pornografia do que liberdade sexual. O corpo é um dado público, o prazer, um segredo pessoal.

Semeamos essa falsa liberdade do explícito. Um mundo onde todos se despem, mas ninguém se ver de verdade. A sexualidade que liberta, aquela que rompe com padrões, que afirma a identidade, que questiona o controle, essa segue sendo silenciada. E é curioso perceber que nunca estivemos tão nus… e tão cobertos de vergonha.

O Espelho Quebrado: Quais os Limites da Nossa Imagem?

Cada selfie é um espelho partido: uma tentativa de capturar o eu, mas também de editá-lo. Vivemos para sermos vistos — mas com o filtro certo, o ângulo perfeito, a luz ideal. Nas redes, a imagem do corpo deixou de ser presença e virou performance. É o “eu” que se (re)constroi para o olhar desse outro. É o desejo medido por likes em corpos reduzidos a estratégias de engajamento. 

E nessa lógica, o limite não é o nu — é o indesejado. Pode-se mostrar tudo, desde que se esteja dentro do padrão. Fora dele, vem o bloqueio, a denúncia, o silêncio. O corpo gordo, o corpo queer, o corpo velho, o corpo racializado… estes ainda precisam se justificar. A rede permite a exposição, mas não garante o acolhimento. É uma vitrine onde nem todos são permitidos ser. 

A questão que resta é: até onde podemos nos mostrar sem nos perder? A imagem pode ser libertadora, mas também pode ser uma prisão do eu. O desafio está em habitar o próprio corpo com verdade, mesmo quando o mundo digital insiste em nos transformar numa caricatura comercial para o desejo alheio. 

Somos Reféns das Plataformas Digitais?

O episódio na França evidencia como grandes plataformas digitais detêm poder significativo sobre o acesso a conteúdos online. Ao suspender seus serviços em resposta à legislação francesa, a Aylo demonstra a capacidade de influenciar políticas públicas e moldar o debate sobre privacidade e segurança digital. A empresa argumenta que a exigência de verificação de idade, mesmo com mecanismos de “duplo anonimato”, é ineficaz e compromete a privacidade dos usuários.

Essa situação revela também essa dependência crescente das plataformas digitais, que operam globalmente e, muitas vezes, escapam à regulamentação nacional. A dificuldade em implementar medidas eficazes de controle de acesso a conteúdos sensíveis, como a pornografia, destaca a necessidade de soluções mais integradas e colaborativas. Mas também nos faz perceber que dependemos desse consumo para estabilizar uma sociedade sexual que não conversa abertamente sobre sexo, mas consome pornografia num clique. Quem é responsável por monitorar o acesso das crianças às redes?

A responsabilidade pela proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital é compartilhada entre diversos atores:

  • Governos: Devem estabelecer legislações claras e eficazes para regular o acesso a conteúdos inadequados, garantindo a proteção dos menores sem comprometer direitos fundamentais, como a privacidade.
  • Plataformas digitais: Têm o dever de implementar mecanismos de verificação de idade e outras ferramentas que limitem o acesso de menores a conteúdos impróprios.
  • Pais e responsáveis: Devem acompanhar e orientar o uso da internet pelos filhos, utilizando ferramentas de controle parental e promovendo o diálogo sobre os riscos e responsabilidades no ambiente digital. 

No Brasil, por exemplo, o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) conferem aos pais o dever de cuidar, educar e proteger os filhos menores, o que inclui a supervisão do uso de tecnologias digitais. A França proibiu o uso de smartphones em escolas para alunos com menos de 15 anos em 2018. Neste ano, a Comissão Europeia deu início a investigações para proteger menores de conteúdos pornográficos ao abrigo do Regulamento dos Serviços Digitais — saiba mais aqui!

IA e Sexting: A Nova Fronteira da Intimidade Digital entre Jovens

A crescente adesão de adolescentes ao “sexting” com o uso de inteligência artificial (IA) revela uma nova dimensão dos riscos digitais que enfrentamos. Segundo uma reportagem do jornal português, Público, jovens estão utilizando ferramentas de IA para criar e compartilhar imagens íntimas, muitas vezes sem compreender plenamente as implicações legais e emocionais envolvidas. Essa prática não apenas expõe os adolescentes a possíveis crimes de pornografia infantil, mas também destaca a vulnerabilidade das crianças em um ambiente digital onde as fronteiras entre o real e o artificial se tornam cada vez mais tênues.

O uso de IA para gerar imagens íntimas falsas de colegas, como ocorreu em casos recentes na Espanha, agrava ainda mais a situação. Em Almendralejo, adolescentes criaram e divulgaram imagens eróticas falsas de colegas utilizando IA, resultando em condenações judiciais. Esses incidentes demonstram como a tecnologia pode ser mal utilizada, causando danos psicológicos significativos às vítimas e levantando questões sobre a eficácia das medidas de proteção existentes.

Diante desse cenário, é imperativo que governos, plataformas digitais e famílias trabalhem em conjunto para estabelecer diretrizes claras e eficazes. A União Europeia, por exemplo, está considerando a criminalização da criação e disseminação de imagens íntimas geradas por IA sem consentimento, reconhecendo a gravidade do problema. Além disso, é fundamental que pais e educadores estejam atentos e informados sobre essas novas ameaças, promovendo uma educação digital que capacite os jovens a navegar com segurança e responsabilidade no ambiente online.

Vivemos Numa “Terra de Ninguém”?

Nessa relutante expulsão do outro, vagamos entres páginas e reagimos de maneira positiva dando likes as nossas conexões vazias desse outro, mas próximos o bastante para manter à distância toda e qualquer negatividade. “hoje, não habitamos mais poeticamente a Terra. Nos instalamos em uma zona de bem-estar digital. Somos tudo, menos sem nome e esquecidos de si. Todo estranho, todo infamiliar está perdido para a rede digital habitada pelo ego. A ordem digital não é poética. Nela, nos movimentos no espaço numérico do igual” (HAN).

A internet, por sua natureza global e descentralizada, apresenta desafios significativos para a regulamentação e o controle de conteúdos. A ausência de uma governança digital eficaz e a dificuldade de aplicar legislações nacionais a plataformas internacionais contribuem para a sensação de que estamos em uma “terra de ninguém”.

No entanto, iniciativas como a Lei dos Serviços Digitais da União Europeia e a atuação de órgãos reguladores, como a ARCOM na França, demonstram esforços para estabelecer regras claras e proteger os usuários, especialmente os mais vulneráveis

O caso da suspensão dos sites pornográficos na França ilustra a complexidade de equilibrar a liberdade digital, a privacidade dos usuários e a proteção de menores. É fundamental que governos, empresas e famílias colaborem para criar um ambiente digital mais seguro e responsável, reconhecendo que a responsabilidade é compartilhada e que soluções eficazes exigem diálogo e comprometimento de todos os envolvidos.

Diante da popularização da internet e do uso descontrolado de smartphones — principais portas de acesso a conteúdos digitais — torna-se urgente discutir as sexualidades nas escolas e em casa. Crianças e adolescentes estão expostos a influenciadores e sites pornográficos que reproduzem, narram e estimulam conteúdos de cunho sexual, muitas vezes sem qualquer filtro ou reflexão crítica. Ignorar a importância dessas discussões, tanto no ambiente escolar quanto no familiar, é contribuir para a formação de uma sociedade pornográfica: uma sociedade que reprime o desejo ao mesmo tempo em que mata a vontade ao romper os limites do outro.

 

Artigo da Autoria de Ícaro Machado