Connect with us

Mundo Novo

Tecnológico mundo novo: autoritarismo disfarçado de diplomacia

Published

on

Ansiamos manifestamente por uma normalidade que nos remete para os tempos pré-covidianos, mas não sabemos muito bem como caracterizar a realidade para onde queremos voltar.  Quando o Governo começou a implementar as medidas de confinamento que são, atualmente, o nosso manual de sobrevivência, expressamos desalento, teimosia e inconformidade, mas assim que o plano de desconfinamento entrou em vigor transformamos repentinamente as indesejáveis quatro paredes a que nos vimos limitados na ideal delimitação geográfica de onde não queremos sair. Estes tempos de pandemia dão-nos espaço para cerebralizar e a verdade é que não estamos muito habituados a isso. Poderíamos até advertir que o sistema está moldado para condicionar a nossa racionalidade, para depreciar a crítica e a dúvida relativamente às coisas que nos acontecem, mas provavelmente estaríamos só a pensar demasiado. 

A partir das nossas janelas, que nos permitem uma visão privilegiada e distanciada do mundo que está de pernas para o ar, vemos a economia mundial em números catastróficos, observarmos o impacto da ignorância presidencial na América, assistimos ao crescimento dos governos autoritários no leste da Europa e testemunhamos a imprevisível tragédia em países como a França, Espanha e Itália. A verdade é que todos estes acontecimentos indesejáveis são potenciados pelas decisões que se tomaram a partir do momento em que foi decretada uma pandemia mundial. Todas estas decisões moldarão o mundo de amanhã e, portanto, conseguimos prever apenas que a realidade a que vamos voltar dependerá, para nossa infelicidade, do exercício mental dos líderes mundiais e, nos estados mais democráticos, também para nosso desalento, da consciencialização e da solidariedade das sociedades que terão um papel fundamental neste processo de transformação. 

Quando o cenário que observamos a partir das nossas janelas resume-se apenas ao panorama nacional, encontramos um Sistema Nacional de Saúde mais consistente do que se esperava e que se tornou essencial, satirizando os defensores da privatização, reconhecemos a sensatez, proatividade e compromisso social com que, na sua generalidade, as medidas de prevenção e confinamento foram implementadas pelo governo, palmeamos o papel dos profissionais de saúde e de outros tantos que permitiram intervenções eficientes nas diferentes necessidades da população e refletimos sobre a incerteza se esta foi ou não a melhor resposta que Portugal poderia ter dado a esta pandemia. 

No entanto, a tempestade parece ainda estar longe de acabar e, portanto, surgem no horizonte lusitano medidas que se argumentarão necessárias sobretudo para combater a pandemia e para prevenir uma segunda vaga de infeções por Covid-19. Estas medidas que se projetam por todo o mundo nesta fase da pandemia visam aproveitar a tecnologia para monitorizar toda a gente em tempo real – como acontece surpreendentemente na China, onde são usadas centenas de milhões de câmaras de reconhecimento facial, obrigando as pessoas a verificar e a reportar a sua temperatura corporal e condição médica, o que permite às autoridades chinesas identificar rapidamente casos suspeitos de infetados, mas também rastrear os seus movimentos e identificar qualquer pessoa com quem tenha entrado em contacto –, ou, tal como acontece na Polónia, de uma forma mais levezinha e protetora, através de uma aplicação para smartphones, seguir o movimento dos cidadãos que são obrigados a permanecer isolados, seja porque vêm de um país estrangeiro ou porque estiveram em contacto com uma pessoa infetada, através de uma ligeira exposição fotográfica diária que facilita o controlo das autoridades polacas. 

Quando os temas de notícia são a monitorização tecnológica e a vigilância totalitária, a comunicação social apressa-se a direcionar-nos para os exemplos asiáticos, nomeadamente a Coreia do Sul e a China, fazendo-nos acreditar que na Europa vivemos uma realidade completamente diferente, delimitando, figuradamente, uma espécie de fronteira protetora que impede a passagem de medidas autoritárias, comprometedoras da liberdade aos direitos individuais, para o continente europeu. 

Paulo Pena, num artigo publicado a 5 de abril no Diário de Notícias, analisa os mecanismos digitais adotados por vários países para combater a pandemia, contextualizando a utilização de aplicações móveis para a recolha de dados pessoais e levantando a questão sobre se “a privacidade sobreviverá depois da emergência?”. Interpretando a análise do autor, percebemos, facilmente, que as fronteiras ideológicas que separam o autoritarismo asiático do democratismo europeu são seguramente as mesmas que diversificam as intenções de André Ventura e as recentes ações ponderadas do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán. O panorama atual da Europa caminha a uma grande velocidade para aquilo que sempre foi objeto de crítica na política exercida pelo Partido Comunista Chinês – o autoritarismo. Os exemplos do leste da Europa são certamente os que mais assustam e, na perspetiva de uma análise consciente, a ilustração perfeita de que as fronteiras ideológicas do discurso europeu são apenas uma espécie de camuflagem para permitir o crescimento de governos autocráticos na Europa – concentrando todo o poder no estado, controlando qualquer oposição política e ideológica e forçando o povo à obediência passiva e à despolitização. 

Vimos já que, na Polónia, o controlo da população que está obrigada a cumprir um período de quarentena é feito a partir de uma aplicação para smartphones que funciona, no fundo, como uma rede social destinada ao envio de fotografias de conteúdo pessoal que, no máximo, estimulam e enriquecem a relação entre as autoridades polacas e os cidadãos que se encontram nessa condição. Este sistema de verificação, que em nada invade a privacidade dos cidadãos, tem um funcionamento bastante simples: a pessoa envolvida é (gentilmente) obrigada a enviar, no mínimo, uma selfie sua que convença as autoridades de que o plano de fundo é efetivamente a sua casa, podendo, em detrimento do nível de satisfação das autoridades polacas, ser ainda (delicadamente) obrigada a enviar não apenas uma fotografia, mas um álbum completo que certifique a sua estadia na habitação pessoal. Caso a pessoa que se encontra nesta condição não envie a fotografia durante um período de vinte minutos que se sucedem à requisição feita pelas autoridades através do sistema, admita-se, da rede social, ou, por outras palavras, caso a mesma pessoa esteja a fazer algo de interessante por mais de vinte minutos e que não seja estar a olhar para o seu smartphone, na eventualidade de não acertar no timing das autoridades polacas, é acionado um alarme e a polícia poderá deslocar-se às residências para fazer uma verificação.  

No meio de todo este processo embaraçoso, há ainda uma agravante – a aplicação foi desenvolvida e é atualmente gerida pela TakeTask – empresa privada. De resto, não sabemos o que acontece aos dados após serem recolhidos, desconhecemos o funcionamento das políticas de privacidade e apenas conseguimos projetar o que a empresa poderá fazer com os dados numa fase posterior à pandemia. 

Apesar de original, o caso polaco não é de todo dotado de exclusividade na adoção de políticas controversas e na utilização de aplicações legalmente implementadas para monitorizar a sociedade. A tendência para, em tempos de pandemia, desvalorizar a privação dos direitos individuais como consequência das medidas de compressão da liberdade espalham-se cinicamente por toda a Europa, numa fase em que o medo é o fator de decisão. 

A Alemanha e a Espanha, ainda que timidamente e em fase de discussão, estão já à procura de soluções tecnológicas que permitam “regular a proximidade e a duração dos contactos entre as pessoas nas últimas semanas e armazenar essa informação anonimamente” no caso alemão e, no caso espanhol, para “verificar os sintomas, dando acesso à geolocalização do telemóvel, que será utilizada para revelar a área onde se encontra e, no máximo, garantem as autoridades de Madrid, para fazer mapas de possíveis fontes de infeção”. Em França, a pedido do presidente Emmanuel Macron, há várias startups a trabalhar em aplicações que permitam seguir, voluntariamente, os pacientes Covid-19 para verificar se as regras de confinamento estão a ser cumpridas, identificando, ao mesmo tempo, outros pacientes nas proximidades.

Os exemplos multiplicam-se num período de enorme tentação para os governos com fortes ambições autoritárias, renunciando, gradualmente, às regras de privacidade. A pandemia poderá ser, deste modo, instrumentalizada para justificar os métodos totalitários de extração de dados que permitem ao governo ter um maior controlo sobre a sociedade. Ainda que numa fase posterior à pandemia deixe de fazer sentido a utilização destas aplicações e medidas tecnológicas, os governos poderão facilmente alegar que é essencial continuar a monitorizar os cidadãos para eventuais novos surtos ou simplesmente porque se conjeturam novas epidemias e condições clínicas que assim o exigem. 

A normalização da vigilância totalitária que veste a roupagem do solucionista punitivo – aquele que, tal como Morozov afirma, tenciona utilizar “a vasta infraestrutura de vigilância do capitalismo digital para controlar as nossas atividades diárias e punir quaisquer transgressões” –, na eventualidade de se vir a propagar pela Europa, dá-nos a certeza de que, apesar do otimismo dos progressistas relativamente à construção de um sistema económico mais humano, à consciencialização dos indivíduos sobre o panorama ambiental e de sustentabilidade do planeta e à partilha e educação de valores que se desejam fundamentais para uma qualquer sociedade, pouco ou nada aprendemos durante o tempo em que ocupamos o sofá e ficamos a assistir à tempestade. 

Naturalmente, as alternativas a este fenómeno são referidas como pouco viáveis no discurso daqueles que aproveitam o momento para sair do armário. Inviabiliza-se a democratização e o acesso à informação correta, desconsiderando um percurso responsável, autónomo e participativo dos cidadãos na luta contra a pandemia, declara-se utópico o princípio da solidariedade e do cuidado mútuo, onde a sociedade trabalharia em conjunto para enfrentar a tempestade e avalia-se falacioso o argumento de que a utilização destas aplicações pressupõem a privação da liberdade dos direitos individuais, como por exemplo, o direito à privacidade, eliminando a capacidade individual dos cidadãos em controlar a sua exposição na sociedade. 

A partir da minha janela, ainda que escurecido por um discurso europeu tendencioso que pouco nos diz e muito nos omite, vejo um mundo diferente onde impera a manipulação estadual disfarçada de diplomacia. Vejo a institucionalização dos métodos de recolha de dados biométricos em massa. Vejo as intenções comerciais, fruto do capitalismo selvagem, em saber qual é a temperatura corporal, a pressão sanguínea e os batimentos cardíacos de cada individuo. Seria muito fácil, para alguém que analisa intemporalmente os dados biométricos de uma pessoa, identificar os seus interesses e vender-lhe tudo aquilo que quisesse. 

Em Portugal, comemora-se a disponibilização da aplicação STAYWAY COVID para monitorizar a propagação do novo coronavírus. O nome é até original e a língua inglesa dá-lhe um ar mais “fancy”, mas apesar das garantias do INESC TEC (Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência), responsável pelo desenvolvimento da plataforma, permanece a dúvida quanto ao uso e abuso das informações recolhidas e aquilo que acontecerá aos dados que foram recolhidos, numa fase posterior à pandemia. 

 

Continue Reading
Click to comment

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *