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Artigo de Opinião

HUMOR SEM LIBERDADE DE EXPRESSÃO, PARECE-ME QUE NÃO!

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Silêncio, vamos rir!

Este, bem podia ser o mote para um espetáculo de comédia ou para um programa de humor de um dado canal televisivo, a uma qualquer sexta-feira à noite. Em ambos os casos, o convite é óbvio, arrancar de quem assiste o riso espontâneo e a diversão, a inevitável gargalhada e a boa disposição! Por sinal, é disso que agora precisamos perante a realidade impactante da COVID-19, num cenário desolador e caótico que nos chega através dos media. O mundo parou, numa bolha de oxigénio a que os portugueses timidamente se foram juntando, assumindo a necessária coesão e consciência social. Cada família encontra agora soluções para dia-após-dia se superar na fragilidade de uma situação pandémica para a qual foi repentinamente surpreendida. Não estou a fugir ao tema, mas vejo a necessidade de o contextualizar. Hoje, mais do que nunca, o ser humano é posto à prova pela imprescindível alteração de comportamentos e rotinas diárias, para a proteção de cada um e de todos em simultâneo. O apelo à união, à resiliência, à paciência, à criatividade e à imaginação, são alguns dos desafios do tempo que agora vivemos, para que cada lar possa sobreviver a um terramoto cuja escala de magnitude está muito para além do quantificável (pelo menos, por agora)! Precisamos (e queremos) respirar de alívio, mas temos noção que esse tempo está, por enquanto, longe. E é por isso que me parece tão importante e imprescindível sabermos viver e conviver com o humor, que nos distraia e nos faça chorar de rir, quando tudo parece desabar à nossa volta. Sobreviver num momento surreal, como dizia um amigo meu, fácil é chorar quando temos vontade, difícil é sorrir com vontade de rir ou chorar de rir num ato reflexo espontâneo (e acrescento eu) sem remorsos ou constrangimentos.

O problema do humor é quando a matéria-prima para a comédia é a situação trágica e frágil que assola uma região ou os assuntos satirizados que retratam a religião, ideais ou a cultura de um povo. Vezes sem conta, proliferam agora nas redes sociais os mais variados vídeos, cartoons ou piadas sobre a pandemia da COVID-19, que se espalham sem pudor, seja por falta de discernimento ou porque nos entretém a mente e nos distrai dos reais problemas. Mas será o humor uma forma de expressividade democrática sem fronteiras, onde a liberdade de expressão tacitamente aceite assume já um espaço cativo e onde tudo vale, mesmo em tempos de dor?

Não posso deixar de lembrar o ataque terrorista islâmico ao jornal francês Charlie Hebdou, a 7 de janeiro de 2015, reivindicado pelas representações controversas de Maomé. Se para uns, o humor é uma fonte de ódio e desconforto, para outros é, sem dúvida, uma forma perspicaz e inteligente de expressão séria camuflada pela diversão, tão ou mais assertiva na reflexão dos assuntos importantes quanto um debate público conjunto. Pensando bem, o humor desperta em nós a reflexão silenciosa e imediata pela necessidade inerente de compreensão por parte do recetor. Fazendo um parêntesis, é certo que nem todas as formas de humor têm a intenção de provocar a reflexão séria, apenas fazer rir (o que por si só, já é fantástico), mas não é este humor a que me refiro.

A este propósito, inevitavelmente, assalta-me ao pensamento um dos grandes humoristas atuais da comédia em Portugal (se é que assim posso dizer), Ricardo Araújo Pereira, a quem os portugueses já se habituaram a ver e ouvir. Falo do humor com inteligência e requinte, sem confundir com a palhaçada de outros comediantes que por aí andam. Sendo certo que o humor e a liberdade de expressão seguem de mão dada e funcionam bem, sinto sempre que há um bom senso (pelo menos, na maioria das vezes), que o limita sem que deixe de ser, contudo, diversificado e enriquecedor. Ainda assim, questiono-me se haverá assuntos proibidos na sátira que leve o humorista a travar a fundo na direção calculada que assume, correndo o risco de parecer aos olhos dos outros um ser superior e intocável, escudado pela confortável liberdade de expressão validada por um estado democrático.

Confesso que já ouvi piadas ou programas supostamente humorísticos dos quais não tive a mínima vontade de rir, ou a minha surpresa foi tanta pela indignação do tema tratado que não consegui projetar ou esboçar, sequer, um sorriso, o que me deixou necessariamente furiosa. Das duas uma, ou a piada e o programa eram tão maus que senti que estive a perder o meu tempo, ou a minha capacidade de discernimento não me permitiu estar ao nível desejado e fiquei naturalmente frustrada. Bom, de qualquer das formas, tenho a noção que é normal nem todas as piadas terem sucesso e haver humoristas mais audazes na escolha dos temas que abordam, suscetíveis de provocar o desconforto. O que não significa dizer que aceito pacificamente que devam desrespeitar os princípios e ideais dos outros só porque sim.

Entendo que a essência do humor com qualidade não é destruir ou matar, mas antes fazer rir e dispor bem, despertando consciências para a reflexão dos temas em causa. Por isso, confesso que não me causa confusão que o humor possa recorrer a qualquer assunto, sem limites ou imposições, e que a liberdade de expressão possa sim, ser usada com criatividade e imaginação na produção de comédia. Temas sérios podem e devem ser retratados, seja através do humor ou de qualquer outra forma de expressão, sem tabus ou medo de falar sobre o que for mantendo coerentemente o princípio humorístico da reflexão que valide essa mesma liberdade de expressão.

Tal como um livro que aborda criticamente uma determinada religião com a qual me identifico ou um filme com base na vivência e orientação sexual de um casal cuja essência não concordo e me indigna, faz parte de uma sociedade democrática e evoluída a liberdade de expressão, cabendo ao leitor o direito de opção na sua aquisição, partindo do pressuposto que a publicação e autorização da obra passa por uma categorização e validação prévia. O humor é apenas uma forma de expressão alegre, que arranca de nós (pelo menos, para alguns) uma gargalhada espontânea que nos faz bem à alma e, porventura, nos faz viver a vida de uma forma mais leve e descontraída (quem ainda não experimentou essa sensação, recomendo vivamente). Nem sempre isento de erro ou crítica, é certo, mas imprescindível na vida (estou convicta) como um caminho para superar e amenizar situações problemáticas. Creio, por isso, ser tão válido quanto a escrita, a música, a pintura, a fotografia ou outras tantas expressões que nos tocam e despertam emoções, desde que eles nos conduzam à felicidade.

Hoje, o mundo assiste recolhido a um vírus que se espalha (parafraseando o poeta Camões) como fogo que arde sem se ver, em todos os ecrãs de televisão, jornais ou redes sociais. Deixemos o humor fazer parte da cura, que entra naturalmente no espaço social digital, para ser ele próprio o analgésico diário que previne a sintomatologia da depressão e pessimismo em muitos de nós.