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Artigo de Opinião

Bloqueios artísticos e nacionalismos

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Hiato, vem para todos. Contudo retomo; reflexivamente brasileiríssima.

Venho do outro lado do Atlântico. Onde a gente chama genocídio de genocídio e não de descobrimento; onde a gente tem que esconder o celular quando anda na rua e colocar o dinheiro no sapato para no caso de ser roubado não levarem tudo. Venho de uma cidade onde o cartão postal é lindo e uns nascem para sofrer enquanto o outro ri.

Venho da América Latina – sim, mesmo sendo branca, continuo sendo brasileira. Sou bem tratada quando falo inglês ou espanhol, elogiam o meu currículo internacional e minha intelectualidade até eu abrir a boca e meu sotaque entregar meu nascimento. Dizem que eu sou inteligente, para uma brasileira. Que sou educada, para uma brasileira. E que não tenha cara de brasileira. De fato, nunca tive.

Não sou estereotipo racista de “mulata tipo exportação”. Não sou estereotipo preconceituoso de latino-americano “preguiçoso e burro”. Sou bossa-nova, carioca zona oeste. Privilegiada o suficiente para estudar em escola particular e poder vir estudar na Europa, mas não o suficiente para ter crescido em Copacabana e não precisar me preocupar com a cotação do euro.

Por que falo isso? Porque nossa nacionalidade é tal como um órgão. Está dentro de nós e nos acompanha ao longo da vida – nos mantém vivos. E não é como apêndice, não dá para tirar. Está lá dentro, não muda, não se transforma. Se nasce com um, morre com ele. Dá para tentar negar, esconder, minimizar. Mas continua lá. Continua sendo parte de você – não dá para mudar.

Digo isso porque ao longo dos últimos dois meses sofri com o famoso bloqueio artístico. Era incapaz de escrever. De nada meus dedos produziam. O teclado, seco. Não importava o quanto eu me esforçava para destilar palavras, não saia. Estava seca por dentro.

Tentava escrever sobre o mercado de trabalho europeu e a escassez dos estágios. O texto me parecia vazio, impessoal.

Depois tentei escrever sobre a Hungria e a crise humanitária; sou mulher bissexual, pensei, será mais fácil. Ainda assim, o texto saiu oco.

Escrevi sobre o Parlamento europeu, perspectivas das eleições portuguesas, políticas da DGS. Não parecia meu lugar de fala. Sentia-me tola. Muito tola.

Voltei para o continente inteiro, falar sobre a ascensão da extrema-direita ou o mês do orgulho LGBT. Mas como falar sobre ascensão da extrema-direita sem citar o fascista que governa o meu país ou falar de orgulho LGBT sem mencionar que o Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais e travestis no mundo?

Mas não queria mencionar Brasil. Não queria mencionar o Sul-Global. Estou na Europa, porta-te como europeia, dizia a mim mesma. Já fui demasiadamente monotemática anteriormente.

Tentei ser individualista. Romântica como Goethe ou Garrett. Falar do meu íntimo, dos meus sentimentos, das coisas da alma. Me senti fútil. Criança egoísta. E desisti.

Parei de tentar.

Parei de escrever.

Culpei os exames, o fim do período. Depois eu escrevo, dizia para mim mesma, depois que as provas passarem.

Tola, o problema não eram as provas. O problema era o descalabro de minha mente que em sua caótica desorganização me impedia transformar pensamento em texto, ideia em palavra. Ou melhor: pensamento em texto apolítico, ideia em palavra neutra. Sem citar imperialismo. Sem citar colonização. Sem citar desigualdade social, dívida histórica e américa latina.

Mas como Belchior, sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes, mas vinda da cidade maravilhosa cheia dos encantos mil que é o Rio de Janeiro.

Não conseguia escrever porque queria escrever sem ser eu. Queria ser narrador sem ser autor. E por mais que o narrador não seja o autor e que o autor não seja o narrador, sempre tem um pouco do autor no narrador e um pouco do narrador no autor.

Queria ser o outro para poder agradar ao outro. Mas não sendo o outro, cabe a mim apenas a esperança de que meu eu seja o suficiente. Não que agrade, pois não nasci para agradar ninguém. Mas que pelo menos não cause repulsa.

Meu eu Rio.

Meu eu Mulher.

Meu eu Bissexual.

Meu eu Imigrante.

Meu eu Branco, mas Antirracista.

Meu eu Feminista.

Meu eu Decolonial.

Meu eu Brasil.

Meu eu, só eu.

Não posso mudar. Espero que baste.

E se não bastar?

Enfim. Não há resposta.

 

Artigo da autoria de Débora Magalhães Binatti

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