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Artigo de Opinião

UMA LITERATURA DE EQUÍVOCOS

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No passado dia 17 de Março, quinta-feira, o prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de escritores foi atribuído a Manuel Alegre. Como era previsível, esta atribuição caiu bem na opinião pública e eu devo ser o único português a vê-la com estranheza, como uma prova de que o mundo literário está cheio de equívocos.

As razões para a atribuição são óbvias: Manuel Alegre é uma figura incontornável da democracia portuguesa; Praça da Canção (1965) foi um dos livros mais importantes na literatura da resistência à ditadura; este mesmo livro comemorou no ano anterior cinquenta anos desde o seu aparecimento, o que deu origem a mais uma reedição da obra; e Manuel Alegre é uma ótima pessoa, cuja poesia está marcada por ideais nobres.

As razões para que Manuel Alegre não mereça este prémio também são bastante claras: é que nada do que eu disse anteriormente tem a ver com literatura. E se é verdade que Praça da Canção foi uma das obras mais importantes no contexto da resistência à ditadura, também o é que a maioria do que se escreveu durante o Estado Novo como crítica óbvia ao contexto político e cultural não possui um valor literário relevante. Não quero, contudo, ser mal compreendido: a poesia de Manuel Alegre tem um grande valor humano, enquanto testemunho da luta pela liberdade, mas não tem um importante valor literário. É neste contexto que, tal como Ricky Moody afirmou que “o romance realista precisa de um pontapé no rabo”, eu proponho, respeitosamente, que se dê um pontapé no rabo à poesia de Manuel Alegre.

Contudo, este acontecimento não me incomodaria muito se não refletisse uma realidade mais sombria: o meio literário está cheio de equívocos. Vivemos tempos em que, mais do que explorar a realidade “bárbara, brutal, muda, sem significado, das coisas”, de que nos fala Ortega y Gasset e que devia ser a única coisa válida depois de toda a literatura do século XX, interessa explorar velhas formas, criar um circo de palhaços à volta de pessoas que “escrevem” e celebrar o escritor em vez de celebrar a obra.

Beckett dizia que a “arte autêntica é a coisa e não algo sobre as coisas”. Arrumemos os nossos livros nos devidos lugares.

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