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Artigo de Opinião

TU, DESCONHECIDO

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Sofia Carvalhinha

Sofia Carvalhinha

Desconhecido, lamento os preparos com que me apresento e a saudação indigna. Mas sendo tu, um mero desconhecido, não me é permitido anteceder se te tratas de uma alta figura de poder ou de um mero operário fabril. Creio que o protocolo obriga a saudações distintas. Para a figura de poder, algo como “excelentíssimo doutor”, apontando para uma certa e ligeira curvatura do corpo em forma de vénia. Para o operário, uma invocação seca, talvez “senhor trabalhador”. Considerando não ser religiosamente apologista de protocolos linguísticos, manterei o tratamento de “tu, desconhecido”.

Do ponto de vista das sensibilidades, assunto de extrema atenção social, não creio incorrer em nenhuma agressão. “Tu” parece-me estabelecer uma intenção de proximidade e confiança suficientes. Desconhecido, mantém um determinado nível de formalidade. E a formalidade é de suma importância na nossa mui nobre e distinta sociedade! Isto porque os homens, nesse movimento dualístico que nos é tão próximo, procuram, por um lado, estabelecer vínculos de intimidade com os demais e, por outro lado, quando a aproximação é cada vez mais penetrante e intensa, denota-se uma atitude de rejeição e até agressividade. Cuidado desconhecido, cuidado com os espaços privados! Não se dá assim um verdadeiro conhecimento entre os homens, considerando-se a tremenda violação que constitui a entrada nos espaços privados. Assume-se, neste seguimento, importância vitalícia da dimensão jurídica da formalidade. Avançamos com “tu, desconhecido” esperançosos de cumprir todas as normas socialmente aceites.

Desconhecido, tenho reflectido muito. Até este ponto, nada de invulgar. Invulgar será talvez a inexistência de conclusões algumas acerca de tais reflexões. Concluo então que inquieta-nos não concluir. Necessitamos impreterivelmente de concluir. E quando as respostas não se insinuam no pensamento? Quando o sol não ausculta as janelas? Inquietação, inquietação. Lembrei então de ti, desconhecido. Apercebo-me de que és o nosso maior medo. E para além de seres aquilo que mais tememos, és também aquilo que subsiste de forma mais imperativa no universo e no espírito humano. Porquê esta ânsia absoluta em banir-te? O que é que tu, desconhecido, nos lembras acerca de nós mesmos que tanto pavor invoca?

O cego que nunca viu, não sentirá seguramente a necessidade de ver. Todo o seu mundo foi construído a partir desse perspectivar. Existirá, eventualmente, essa necessidade por questões de índole social. O sentimento momentâneo ou continuado de inadaptação pode dar origem a motivações que trespassem uma dada condição física.

Deploramos o desconhecido porque já conhecemos. O desconhecido confronta-nos com os limites, o imperfeito. Há uma necessidade intrínseca, quase versando o limiar do obsessivo, de conhecer. Conhecer, porque outrora fomos capazes de conhecer. Esta aproximação à Verdade, ainda que longínqua, gera uma energia abrupta e que o homem inatamente transporta. Energia que nos toca num estado bruto e que demoradamente adquire forma. Não se trata de anular o desconhecido. Trata-se verdadeiramente de explorá-lo, penetrá-lo no seu mais profundo abismo. Trata-se ainda de acreditar. Acreditar que tu, desconhecido, nos legarás todas as respostas que procuramos.

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