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Sociedade

JÁ NÃO HÁ SAPATEIROS ASSIM

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Estamos no número 182 da Rua André de Castro, em Vila Nova de Gaia. Ao entrar somos arrebatados pelos cheiros fortes das colas e outros produtos usados na reparação de sapatos. “Entramos no século passado”, pensamos. Ali tudo nos faz lembrar o antigo: uma máquina de gaspear com mais de 100 anos, uma máquina registadora sem touch screen, outras duas que foram estimadas ao longo dos anos, mas onde tempo deixou marcas, os sofás com padrões que já não estão na moda, duas grandes estantes cheias de calçado, algum visivelmente obsoleto, que as pessoas foram deixando para trás quando não havia arranjo.

Mas da mesma forma que a antiguidade nos surpreende, a beleza tosca do lugar espanta-nos. O sapateiro troca o seu casaco de trabalho cheio de manchas, “para não parecer mal”, diz-nos.

Hoje, na oficina de Aquilino Saraiva ouve-se a frequência 100.8, a Rádio Sim. O som de fundo faz companhia ao sapateiro rápido de 76 anos, enquanto ninguém entra ou sai, ou enquanto não há conversa que preencha o espaço. Um sapateiro rápido é a quem alguns recorrem quando precisam de arranjos rápidos, por exemplo, quando saem as capas dos sapatos às senhoras ou quando a borracha da sapatilha se descola.

“Andava na escola, tinha entre dez e onze anos. Era uma família muito grande. O meu pai tinha sete filhos e alguém tinha de trabalhar para comer. De manhã ia para a escola aprender a ler e a escrever e de tarde ia trabalhar.” Enquanto conta como aprendeu o ofício da sapataria, o “Sr. Saraiva”, como quase todos os conhecidos lhe chamam, fala como se tivesse vivido tudo ainda ontem.  Foi com “o senhor José Valente, na Rua de Camões, n.º498 no Porto, eu morava na Rua de Camões n.º391. Ali eramos todos uma família.Tenho fotografias em que estão todos. Era o bairro da Ilha do Pinto, que já não existe.”

O diálogo continua e faz-se uma pequena viragem para o serviço militar obrigatório, onde esteve dois anos e seis meses, “mais ou menos isso”. “Fui para a tropa em 1960 e vim de lá em 1962. Não foi assim muito mau, assentar praça era obrigatório no regime anterior e eu fiz isso como outro qualquer. Era preciso a 4ª classe, mas eu só tinha a 3ª, porque tive de trabalhar para ajudar o meu pai e a minha mãe”, explica. Nota-se carinho e respeito enquanto fala do passado, que viveu também em Lisboa, no Batalhão de telegrafistas, n.º 424, a parte das comunicações, em que funcionava com a telegrafia com fios, a TPF. “Fui para a escola de cabos e fui promovido a Primeiro Cabo”, alguns risos seguem-se ao panorama do “já mandava” que o sapateiro comenta com grande humildade.

“Depois da tropa, não quis ser mais sapateiro e fui para padeiro. Na sapataria havia muita concorrência, não dava para uns arranjos rápidos. Fui padeiro e ainda estive numa pensão de uma tia em chaves. Nunca gostei de ser padeiro, foi só por necessidade. Entretanto conheci a minha esposa em 1965”. Fala com orgulho dos seus cinquenta anos de casamento e ainda dos seis filhos e dez netos, que mantêm a sua história com uma família grande. “Deixei de ser padeiro e vim para aqui para o candal trabalhar em 1969 até 1985, na eletrocerâmica, onde estive 16 anos.” Sublinha-nos que apesar de trabalhar em Gaia sempre viveu no Porto.

Estamos ao balcão da oficina a conversar. Sempre a trabalhar durante a conversa, veem-se as mãos sujas de graxa, umas mãos de 31 anos de sapateiro naquele lugar. A casa onde é a oficina era de dois sócios “e eles passaram-me isto, mas já não existe nada do que eles deixaram, só as prateleiras. Vim para aqui em 1985, até lhe digo a data, 26 de junho de 1985. Primeiro que arranjasse clientela foi o cabo dos trabalhos, mas depois lá fui devagarinho. Não conheciam, não estavam habituados, mas através da qualidade do trabalho as pessoas foram ganhando confiança”, conta.

Começou em casa a fazer arranjos com uma ferramenta que tem agora nas mãos, ferramenta que o acompanha há 31 anos. Diz que a melhor parte de ser sapateiro é a atenção que dá aos que o procuram. “As pessoas gostam de vir aqui também para desabafar, o sapateiro é um confessionário”, diz Aquilino, acerca da sua relação próxima e de amizade com os seus clientes.

“Tem ali uma lixadeira, polidora e rebarbadora. Esta é o meu braço direito”, assegura, enquanto aponta para uma das máquinas que enchem a sua oficina. “Ainda tem ali uma prensa”, acrescenta. Admite que as máquinas antigas são as melhores: “Não tenha dúvidas disso”, enfatiza.

“Existem menos sapateiros agora, antes havia muita gente que trabalhava nisto. Houve uma altura em que eu andava desanimado e tentei passar isto, mas nunca me ofereceram o que eu queria. Já tentaram demolir esta casa, mas também não pagavam o justo valor”, desabafa.

Aquilino acha que nunca lhe vão dar o valor que a oficina merece e que “quanto mais velha a oficina for” esse valor será menor. “Para mim tem muito valor”, garante. Conta, satisfeito, que os familiares querem tomar conta do seu património: “Eles dizem que se um dia eu não poder, eles vêm para cá.”

Acabou agora de passar na rádio a “Rolling on the river” e a nossa conversa está a chegar ao fim. Mas ainda há tempo de falar da importância de ensinar aos mais novos estes trabalhos que caem em desuso. Explica que “tem que se saber. Temos de aprender a técnica, que a ciência e as máquinas nos dão para fazer tudo o que quase não é preciso fazer manualmente. Mas tem de haver trabalho manual, porque sem ele não se faz nada. Não se põe um robot e sai um sapato pronto, é preciso a mão de obra. As mãos é que vão fazer o sapato”.

Entretanto, entra uma cliente para levantar uma encomenda.

Desta conversa, fica o carinho pelas pessoas e pelo ofício, pelo passado e pelo futuro dos sapateiros rápidos.

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