Cultura
O Mal Não Existe: talvez o melhor filme de 2020
Apreciado na Europa, valendo-lhe premiação e reconhecimento, “O Mal Não Existe” vem questionar de forma intrépida a moralidade da punição. Esta recente realização de Mohammad Rasoulof é um filme obrigatório. Afinal, todos precisamos de remexer a nossa moral e relembrar o que significa “pena de morte”. No Irão não se achou legítima tal abordagem, resultando na prisão do realizador – sendo esta uma realidade que emerge distante mas de imprescindíveis indignação e retaliação.
Entre Abbas Kiarostami, Asghar Farhadi e alguns outros nomes relevantes do cinema, Mohammad Rasoulof é mais um excelente realizador iraniano. Nasceu em Shiraz, há 48 anos, e formou-se em Sociologia, em Teerão. Tem ganho destaque na sétima arte com filmes premiados, por exemplo em Cannes, como “Goodbye” (2011) e “A Man of Integrity” (2017), onde se mostra sempre crítico do regime do Irão.
Fazer cinema neste país nunca foi tarefa fácil, pior ainda se a isso se juntar a postura de Rasoulof.
O artista é frontal e declaradamente discordante do Estado. Assim, entre condenações de prisão e confiscação de passaporte, a sua desafiante liberdade de expressão acarreta um histórico judicial.
Juntaram-se, numa co-produção, companhias do Irão, República Checa e Alemanha, para nos trazerem o produto final: “O Mal Não Existe”. Nomeado para o Festival Internacional de Cinema de Berlim, o Estado iraniano não permitiu que o realizador aí se deslocasse, o que não foi impeditivo da merecida vitória do Urso de Ouro.
O filme de 151 minutos é composto por quatros pequenas histórias que, juntas, compõem a crítica a que o realizador se propôs. Os primeiros minutos do filme são de natureza quotidiana, retratada sem qualquer complexidade onde tudo segue calmo. Mas, de repente, cessa-nos o fôlego e o oxigénio parece escasso.
“Sim, agora lembro-me do tema do filme” – pensamos. E, aí, é o fim da primeira história.
Já na segunda parte, depois de tamanha chicotada no espectador, as personagens são outras e, desde logo, relacionáveis com o tema “pena de morte”. Após a semi-resolução do dilema, agora exposto através de um diálogo relativamente extenso, outro final imprevisível acontece. No terceiro “conto”, vai-se desvendando exponencialmente o mistério instaurado neste novo enredo e, com surpresas seguidas de surpresas, fica-se desarmado – nós e as personagens. Na quarta e última parte, a revelação está guardada para o fim e o assunto-mãe é rematado com analogias.
Dois pontos de vista são abordados: o daqueles a quem se ordena que executem a pena de morte, e o dos condenados. Em relação aos primeiros: há os que obedecem (uns porque tem de ser, outros por rotina) e ainda quem o faça por conveniência e egoísmo. Do lado dos segundos: há os que sofrem as consequências físicas da punição (sejam eles criminosos ou simplesmente assim considerados) e os que, por laços de ternura com o então assassinado, são para a vida toda psicologicamente condenados. Porque sozinhos não somos seres humanos. Todos os nossos nos perfazem e, morto um deles, o fantasma das suas memórias assombrar-nos-á sempre.
Por comodismo ou falta de contacto com semelhante atentado à moral e à liberdade, a pena de morte não é tema de debate numa conversa de amigos em Portugal, ou poucas vezes o é. Este egoísmo, relacionado com a “sorte” de uma democracia aproximadamente sã, só é resolúvel com a cultivação moral dos indivíduos – e é aí que se encaixa o cinema.
Este filme é um bom exemplo disso: pode servir para acordar um ponto nosso mais adormecido.
Que a pena de morte é uma aberração de conceito não há dúvida. Que ninguém a merece, também não – por razões várias como a oportunidade de correção do erro ou a possível situação de “nada a perder” de um criminoso. Mas, mesmo longe da questão da pena de morte, há questões que pairam no ar: que poder moral tem qualquer um de nós para executar uma pena, seja ela de que dimensão for? É criminoso e está sujeito a uma pena, mas quem pode moralmente fazê-la cumprir?
Nos diálogos encontram-se os elementos-chave para a construção moral que se pretende, interpretados por atores cujas representações, não sendo espantosas, não comprometem a integridade do filme. Os planos, de qualidade progressiva, que culminam num deleite visual na última história, são conjugados com uma boa escolha musical.
Em Portugal, o filme estreou este ano a 10 de dezembro mas manteve-se nas salas de cinema até recentemente.