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Cultura

ESPERANÇA EM TEMPO DE GUERRA

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A última edição do festival Música & Revolução apresentando pela Casa da Música é marcada pelo centenário da Primeira Grande Guerra. Os programas traduzem momentos relevantes da história mundial e são assinalados  com o tema Música & Conflito.

O primeiro concerto do festival a ocupar a Sala Suggia, Esperança em Tempo de Guerra, conta com a presença do Coro da Casa da Música, da Orquestra Barroca e da Orquestra Sinfónica do Porto.

Baldur Brönnimann é quem dirige o Coro da Casa da Música, no início da primeira parte, através de Friede auf Erden (Paz na Terra) de Arnold Schönberg.

A interpretação do coro a capella, marca o silêncio que se instala lentamente na sala, em conversas que se findam à pressa em sussurros, enquanto os últimos lugares se ajustam e os olhares se dirigem decididos e altivos para o palco. A alternância entre harmonias maiores e menores, que tocam a serenidade da paz enquanto ideal e a crueldade do conflito enquanto realidade, capta a atenção dos mais resistentes, que se espantam com o tema, que  lembra música sacra “Olha, parece música de igreja”, “Shiu!”. As vozes do coro elevam-se nas palavras do poema de Conrad Ferdinand Meyer e extinguem-se, perdidas entre as primeiras palmas.

Laurence Cummings, cravista e maestro reconhecido, foi director dos estudos de Performance Histórica na Royal Academy of Music e inclui no seu currículo produções para a English National Opera,  Ópera de Gotemburgo e Ópera de Lyon. Maestro titular da Orquestra Barroca Casa da Música, é ele quem dirige  as três obras que seguem a interpretação do coro, tomando o seu lugar ao cravo e orientando os músicos que chegam um pouco de todo o mundo.

O suite de Naïs e o Suite de Música para os Reais Fogos de Artifício são composições que celebram o tratado de paz de Aix-la-Chapelle, que pôs termo à Guerra de Sucessão Austríaca em 1748.

A ópera Naïs, conhecido como “Ópera da Paz”, uma composição de Jean-Philippe Rameau, principia o jogo de instrumentos da Orquestra Barroca envolvendo a plateia, que segue, agora, ritmos mais enérgicos.

Os rostos e movimentos dos músicos dramatizam o que não pode ser pronunciado, pacíficos e compenetrados, teatrais e aparatosos, chamam a plateia a si, para lá do que pode ser ouvido.

A pausa que o final de cada obra permite, reveste-se de sons acanhados de pernas que se agitam e bancos que vão sendo ajustados, enquanto a plateia procede à protocolar ovação.

A Sinfonia em Lá menor, ZWV 189 de Jan Dismas Zelenka, marcada pelos allegros, evoca obóes, fagotes e cordas em quatro andamentos expressivos e catárticos. Acabada a sinfonia, os músicos recostam-se e baixam os instrumentos, por momentos, esperando as palmas, que vão surgindo tímidas e descompassadas e, rapidamente, se unem sincronizadas e sonantes.

A obra de Georg Friedrich Händel, Música para os reais fogos-de-artifício, foi uma encomenda do rei George II, destinada a acompanhar o espectáculo pirotécnico que lhe dá nome. É um final imponente para a primeira parte do concerto, do qual o auditório acorda, vagarosamente descola dos bancos e recupera do estatismo regateado pela sua completa atenção.

Durante o intervalo, a mancha de público que ocupa a sala dispersa lenta, porém, entusiasticamente. Trocam-se comentários, ouvem-se alguns bocejos e há quem se levante somente para “esticar as pernas”.

A segunda parte, a cargo da Orquestra Sinfónica e do Coro da Casa da Música, promete a narração de Um Sobrevivente de Varsóvia e as inspirações apocalípticas de O Cântico Eterno.

Baldur Brönnimann, assume, pela primeira vez, de forma segura e descontraída, a posição central em frente da Orquestra Sinfónica. O maestro, que já dirigiu as orquestras Sinfónica da BBC, Real Nacional Escocesa e Filarmónicas de Oslo, Helsínquia, Copenhaga, Estocolmo e Seul, guia músicos e coro, ladeado por Mark Le Brocq e Magdalena Anna Hofmann.

Na peça de Arnold Schönberg, o tenor canta um episódio que retrata o cruel tratamento nazi sofrido pela população judaica, acompanhado pelo coro, que transporta o público para o gueto e complementa o ambiente brutal, violento e desolador.

A harmonia no palco é tal que o maestro aparenta mover-se ao sabor das ondas germinadas entre os músicos, porém, são eles barcos e ele a corrente ditada pela pauta. Os sons desta fase do espetáculo são mais elevados, mais guturais mas também mais áureos e idílicos, num apelo à paz entre os homens, incitado pelo horror da guerra.

O solo de violino e a voz de soprano de Magdalena Anna Hofmann, demarcam a cantata de Leoš Janačék. Profundamente dramática, lírica e sonhadora, a obra cobre-se de uma grandiosidade e tom reflexivo pautados pela intervenção do coro. Soltam-se uns suspiros de espanto entre quem ouve, perante a impressionante projeção de voz de Hoffmann, e uma harmonia algo transcendental apodera-se dos espectadores, incapazes de afastar o olhar do palco, resistentes aos ritmos que os embalam. Suave, a composição alterna entre tenor e soprano e divide-se em quatro secções enriquecidas pelo constante e hipnotizante jogo de vozes e instrumentos. A plateia rende-se ao Cântico Eterno num quase transe de que demora alguns segundos a recuperar, para uma poderosa e sentida ovação final.

Excerto de Rameau – Suite de Naïs (clicar para ouvir).