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Cultura

Que em todos os Pós-Guerra haja canções do Samuel Úria para nos guiar

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Faltavam breves instantes para o início do espetáculo e a sala Suggia estava cheia, dentro das limitações impostas pelos novos tempos: metade das cadeiras ocupadas, metade por ocupar. No entanto, contra o que o vírus podia prever, assim que Samuel Úria e a sua banda entraram em palco, qualquer vazio foi preenchido pela energia contagiante do artista e pela promessa de que a noite que se avizinhava seria mais de proximidade do que de distância.

Foi “Fica Aquém“, o primeiro single de Canções do Pós-Guerra, que abriu o alinhamento como que com um escancarar da porta. Via-se um Samuel disposto a dar tudo e mais alguma coisa, e se alguma dúvida sobrevivia ao final do primeiro tema, erradicava-se à segunda canção, “Tempo Aprazado“.

Do hino revolucionário à balada, em duas canções cimenta-se a certeza de que Samuel Úria é o melhor no que faz e manuseia as várias realidades que cria com uma mestria invejável.

Em entrevista ao JUP, uns dias antes do concerto, Úria prometia que tentaria fazer o mínimo de alterações possíveis à apresentação em palco das novas canções, apesar das limitações sanitárias do presente: “vai haver contingências e elas até vão ser notadas em palco na distribuição das pessoas. Mas, mesmo assim, vou manter os palcos cheios – mesmo que estejamos mais distantes, mesmo que haja essa estranheza de ver a plateia mais despida, com lugares vazios e com pessoas de máscara”. Na Casa da Música, a promessa via-se cumprida e, apesar dos espaços entre músicos, o palco estava cheio, desde o coro colossal até aos músicos que costumam já acompanhar o artista nas suas conquistas ao vivo.

“Os artistas fazem parte do tecido cultural de um país, o tecido cultural do país torna-se a identidade do país, e a identidade tem de estar voltada para a resistência”

Segue-se o segundo single do mais recente longa-duração “O Muro“, e a dedicatória aos Clã (que assistem ao concerto da plateia): “Mãos“. A música é recebida com um abanar de cabeça lento pelo público em jeito de slow e, numa completa mudança ambiente, chega “Aos Pós“, que arranca do público, mesmo através das máscaras imponentes, as vozes que com maior esforço se fazem entoar. A plateia e os músicos  estão unidos em prol de algo maior. A resistência sente-se no ar e o concerto ainda nem vai a meio.

Num curto retrocesso temporal viajamos até “Carga D’Ombro“, single do álbum homónimo , que proporciona o clássico sing-along do refrão. Mas depressa se regressa ao presenta com uma espécie de hat-trick de canções novas: “As Traves“, “Guerra e Paz” e “A Contenção” invadem sem permissão – e ainda bem – a Casa da Música.

Se a primeira se destacou pelo final impossivelmente épico e a última pela sinergia do palco e do público no padrão de palmas que, intuitivamente, os fãs pareciam já conhecer, “Guerra e Paz” foi destacada por Úria por ser das poucas músicas a não ser gravada, integralmente, em Vila Nova de Gaia, no estúdio de Miguel Ferreira. Segundo o próprio, o facto das canções terem sido gravadas  junto ao Douro, deu às canções uma vida nova – “somos mais “esponjas” do que gostamos de admitir”.

O público deixa-se levar e absorve toda a energia que o artista tem para libertar – como “puto hiperativo” que afirma ser em palco. Samuel aparenta estar em nossa casa e nós na casa dele.

Passamos por “Espalha Brasas” de O Grande Medo do Pequeno Mundo que parece ganhar um novo sentido nos novos tempos e por “Eu Só Preciso“, canção da autoria do guitarrista Jónatas Pires que, por momento, assume o protagonismo do concerto. Eis que chegamos a um dos momentos monumentais da noite: “Fusão“. Do refrão épico ao, inegavelmente, melhor gingar de ancas de Portugal, a canção de Marcha Atroz assume o papel de hino inesperado e transforma a Casa da Música numa pista de dança e num momento de catarse.

Olhamos para Samuel Úria e vemos que está tudo onde deve estar. O mundo não é o mesmo de quando a canção viu a luz do dia pela primeira vez, mas nem se nota.

Se em entrevista o cantautor referia que os vídeos que acompanhavam cada um dos temas eram como “o desconfinamento” do próprio disco, o concerto foi o grito de aviso a toda a gente de que é mesmo cá fora que é o seu lugar.

É com “Cedo” que assistimos à primeira participação especial do concerto: Catarina Falcão, também conhecida como Monday. A este belo momento de cumplicidade que transmite à plateia o abraço que os próprios cantores dão em palco, segue-se “É Preciso Que eu Diminua” que, com o seu crescendo icónico, nos faz perceber que já lhe foi concedido o estatuto de clássico do reportório musical lusófono. Depois, por outro lado, ouve-se a balada “Vem de Novo“, que transforma o incêndio metafórico que enchia a Casa da Música num lume brando, em jeito de embalo. E é desta vulnerabilidade que se arranca o primeiro aplauso altissonante da noite.

O findar do alinhamento marcava-se por com “Segreguei-te ao Ouvido“, tema assustadoramente pertinente nos dias que correm e “Teimoso“, tema que Samuel dedicou aos governantes do mundo aquando da entrevista com o JUP, justificando esta escolha dizendo que “hoje em dia as questões ideológicas estão a redundar em teimosias que exploram os nossos medos e as nossas ansiedades. Estamos todos a ser um bocadinho garotos a defender as nossas ideias.”

Se o alinhamento principal tinha sido de luxo, o encore só o elevaria a um nível superior. A seguir ao tema ternurento que dedica à sua mãe – “Menina” –  nasce o indiscutivelmente mais inesperado momento da noite – o dueto com Gisela João de “Lenço Enxuto“. Originalmente cantado com Manuel Cruz, o tema ergue-se como um dos mais emocionantes momentos da noite.

Antes do início da canção, Gisela João afirma que considera essa canção o melhor dueto que alguma vez fez. No final do tema, e perante tal triunfo absoluto, não temos outra opção a não ser concordar.

Nas palavras da fadista barcelense, Samuel é dos poucos artistas com quem se cruzou que está na música pelos “motivos certos”. E tal afirmação vai de encontro às declarações de Samuel sobre o processo de criação: “o disco pronto pode não ser o mais vendável, pode até afastar-me de algum sucesso… mas para me sentir satisfeito ponho todo esse lado comercial de parte. Tenho de respeitar as ideias.”

Segue-se o incontornável “Império” e o concerto é fechado a chave de ouro com “Barbarella e Barba Rala“.

Três ovações em pé e muitos sorrisos escondidos por máscaras mais tarde, dava-se o final do concerto e da reafirmação de Samuel Úria como um dos melhores autores de canções de Portugal. Quando questionado sobre o título, Samuel Úria afirmou ao JUP que com “guerra” se referia a todos os contextos em que a palavra poderia estar. Depois do concerto resta-nos a certeza de que seja qual for a guerra, todo o pós-guerra será melhor se estivermos com ele.