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Cultura

Rui de Noronha Ozorio: da palavra se faz sonho e a criança renasce

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Qual foi o papel da escrita durante o teu crescimento?

Se me ponho a pensar como e quando escrevo, noto que me proponho a fazer um exercício de descoberta, porque, na realidade, nunca pensei nisso, ou se o pensei, terá sido sempre de forma a não visitar muito o passado. Lembro-me da primeira vez que vi e abri um livro de poesia. Depois de muitos policiais e literatura juvenil (que eu comia energicamente dentro da cama) descobri em casa dos meus avós maternos (a literatura é sempre um lado materno) um grande e pesado livro de capa azul, uma antologia desde o cancioneiro medieval até à primeira metade do século 20.

Nesse livro, parei em dois poetas desassossegados: Soares de Passos (e a busca ultra-romântica da eternidade depois da morte) e Fernando Pessoa (na busca permanente do pensamento). Dois poemas se juntaram: “O Noivado do Sepulcro” e o “Menino de Sua Mãe“. Ambos falavam da morte, dessa ceifeira que acompanha persistentemente a vida de todos os poetas. Foi a partir destes dois poemas, destes dois poetas em particular, que, pela primeira vez, senti que tinha de escrever.

“Era o desassossego a sair da pele, da minha mão esquerda (porque não sei escrever com outra)”

Com o correr do relógio, perdi o caderno onde escrevi estes primeiros poemas. Mas quando os mostrei, pela primeira vez, à minha professora de português, recordo a preocupação que os seus olhos me lançaram e senti, assim, que tinha de continuar. Tinha 13 anos e um desassossego tremendo e abstrato.

E quando te tornaste percursor de uma escrita própria?

Por alguma razão que desconheço em absoluto, deixei de escrever durante uns anos. Hoje, tenho a certeza de que foi esse intervalo que me salvou. Voltei mais tarde a escrever, já com 20 anos, provavelmente. Começava uma nova fase em turbilhão, era o rapaz com medo de amar, com medo de ser e uma velha alma a exercer os seus pesados cabelos brancos nos pequenos ombros resistentes e em tensão.

Escrevia poemas com muitas sombras, mas desamparados, a sofrerem de orfandade. Só aos 20 e poucos anos descobriram mãe: o poeta Al Berto. Era ali que eu queria estar, era ali que eu era. Ele dizia tudo o que eu sentia no silêncio da madrugada. Durante anos, fui um poeta triste, assombrado pela própria sombra, remetido a um silêncio velado por metáforas que não dessem a entender quem era e, ao mesmo tempo, dissessem tudo. Escrevia de noite e só de noite – era o momento da confissão de um desespero contínuo.

“Posso dizer que escrevia por não ter coragem de me matar. E ainda bem. A morte continua a ser a única má-companhia que eu dispenso”

Entretanto, voltei a Pessoa, nos espelhos de Campos e de Caeiro, e atirei-me aos cafés. Só escrevia no café, rodeado do ruído de gente.  E andar no meio dos modernistas, levou-me até ao Almada e ao Mário de Sá-Carneiro, à boémia de Paris, a uma Lisboa feita de tertúlias, de ópio e absinto, um pré-indicador do sonho como habitáculo de escrita. Depois, chegou o ritmo e a resistência de Ary dos Santos e Natália Correia como tonitruantes sopros de libertação. Se me puser a pensar, houve sempre nos meus poemas uma luta, paroxisticamente titânica, entre a liberdade e o cárcere.

Qual a influência desses nomes numa fase de auto-descoberta?

Quando dei por mim, tinha de escrever todos os dias, como um antibiótico ou tábua de salvação das horas paradas. Mas há uma data concreta que vem a ser a grande revolução no corpo e no coração dos meus poemas: 26 de Novembro de 2006. Assistia no noticiário à notícia da morte de um poeta: Mário Cesariny de Vasconcelos. Quem tinha sido? O que era o Surrealismo? Por que razão onírica e real me puxava alegremente o braço para um labirinto onde me deveria perder para me encontrar? Não tive como rejeitar o acaso e atirei-me sem medo à espiral da descoberta.

“Hoje em dia, não escrevo de noite”

Foi este poeta que trouxe a luz solar às minhas palavras mais lunares, a provocação policromada, a alegria de escrever. Hoje não escrevo desassossegado e, mesmo que o quisesse, já não saberia fazê-lo com verdade. Hoje, os meus poemas escrevem-se na cama, mal os primeiros raios de luz invadem o quarto e os deuses lascivos surgem nus e abraçados, ao som colorido das suas enormes bocas abertas à vida.

O jornalismo foi a escolha óbvia para quem já tinha na escrita um escape?

O jornalismo foi um erro de casting, agora sei que o foi. Sempre idealizei o jornalismo, acima de tudo, como um ato de liberdade, uma profissão que existia para denunciar uma mentira, para exaltar o espírito e o pensamento crítico, para informar e para formar, um grupo de ativistas da língua e da cultura. Provavelmente foi uma ingenuidade, um sonho infantil de quem vive inquieto com a realidade que nos circunda. Licenciei-me em Jornalismo a pensar nestas premissas, mas aquilo que acabei por encontrar foi o exato oposto: um mundo de profissionais vendidos aos interesses e aos lobbys, às guerras primárias das audiências, ao entretenimento barato, ao esmiuçar da vida alheia, à falta de respeito pela pátria de Pessoa – que é a língua portuguesa.

O que é que a poesia ensinou a um jovem repórter ou jornalista?

Penso que não ensinou nada. Ela é sempre um reencontro com o paraíso, com o momento inicial de cada um de nós, onde somos novamente virgens, onde o sonho habita livre. A poesia é o labirinto onde nos perdemos e encontramos.

“Não faz parte missão da poesia ensinar o que quer que seja, a não ser desaprender tudo o que nos foi ensinado”

Como é que surge o teatro na tua vida?

O teatro surge naquela definição do Peter Brook: num espaço vazio e na vontade de o preencher. Nasce do silêncio altamente sonoro da solidão e da observação da vida e das pessoas. Nasce da necessidade de provocar cataclismos de amor louco e, acima de tudo, de um ato revolucionário de crescimento enquanto homem, enquanto espírito de corpo e voz, veículo de transformação de um texto morto em pulsação e movimento. Se pensarmos bem, o teatro é isso mesmo, um palco, um espaço, onde a vida acontece, onde a magia se torna palpável e quotidiana.

Em 2005 integras o elenco da peça “Amália” de Filipe La Feria. Qual a sensação de aliar o canto ao teatro?

Nessa altura, ainda cantava razoavelmente bem e gostava de o fazer. No entanto, o que mais me marcou nem foi o casamento entre o canto e o teatro, mas o facto de estar a fazer um espetáculo que esteve em cena dois meses (num tempo em que ainda havia carreiras), dentro de uma família de mais de 20 colegas (entre atores, diretores e técnicos). Cresci imenso enquanto pessoa, homem livre e em desconstrução. O teatro musical é riquíssimo e exigente porque combina nele tantas e tão belas formas de expressão teatral.

“Já passaram 16 anos e ainda sou capaz de dizer o texto quase integralmente. É como a primeira vez que fazemos amor”

Ser um artista multifacetado é desafiante. Onde te sentes mais completo na expressão? 

A arte é sempre um desafio que propomos à vida – um desafio de criação, onde nos aproximamos da omnipotência de deus (e do diabo, claro está!) Criar é onde me sinto sempre mais completo e, curiosamente, mais despido e mais frágil. Seja como poeta, seja como ator, seja como encenador, seja como professor é o ato da criação que me acende o fogo, o motor sanguíneo das veias, que ilumina os caminhos, os trilhos que o mistério da vida me vai revelando a cada passo e a cada voo.

Em 2019 lançaste o livro de poesia “Mar Subverso”. Qual foi o caminho até à materialização das tuas palavras?

A minha escrita é livre e caótica, apresenta-se para além da razão, é uma enxurrada sem rei nem lei. Mas, um dia, o Francisco Garcia Reis e o Nuno Queiroz Pereira, os meus editores, decidiram fazer-me o convite a essa organização e apanharam-me numa hora particularmente positiva e empenhada. Agora tenho um livro que faz companhia aos poetas da minha biblioteca e que também anda nas mãos de amigos e de estranhos a materializar-se como bem lhe apetece.

“Sempre pensei que um dia tinha de publicar um livro, mas nunca tive paciência para me organizar nessa empreitada”

Durante o ano de 2020, surgiste com uma iniciativa no bar Luca, juntamente com a Cristina Bacelar, às segundas feiras, denominada “Poesia Lucalizada”. Dar espaço à poesia permite que ela continue a respirar?

Organizo sessões de poesia há já alguns anos e a “Poesia Lucalizada” foi o último projeto, criado em plena pandemia. Um projeto condenado a resistir. Calha bem porque a poesia é sempre um ato de resistência. Trabalhar com a Cristina Bacelar é um privilégio único porque trata-se, acima de tudo, de partilhar o palco com uma enorme amiga e uma artista ímpar no panorama musical português, alguém em quem eu confio de olhos fechados e admiro de coração aberto. Dar voz aos poetas é a única forma da poesia poder respirar, caso contrário, o pó acaba por asfixiá-la na tumba do esquecimento.

Artigo da autoria de Márcia Branco