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Cultura

Somos os filhos das “Bruxas de Salém”

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Baseada em factos históricos, esta peça retrata a realidade de uma pequena comunidade durante o final do século XVII, onde homens e mulheres foram perseguidos e julgados por bruxaria. Sob tons acusativos e vingativos, parece que nenhum cidadão de Salém está a salvo da floresta de mentiras que devastam a cidade.

Esta história trata-se, então, de uma alegoria entre uma época distante e os meados do século passado. De facto, é impossível não associar a peça, estreada em 1953, ao macarthismo, uma política de perseguição anticomunista dos anos 50, nos Estados Unidos da América, que vitimou o próprio autor. Nas palavras de Miller, esta obra foi “um ato de desespero” que se tornou intemporal. E se Salém de 1692 se pode assemelhar à América de 1950, pode também fazer-se a ligação entre as perseguições desse passado, com a intolerância do presente, e é por isto que a peça continua tão atual como há 70 anos.

Cada personagem tem uma narrativa própria, denotando-se vários pontos de vista ao longo da história. O herói e o vilão misturam-se e ficamos sem saber no que acreditar. Então o que é que estamos a ver? 

Ninguém parece culpado e ninguém parece inocente. São duas palavras que andam de mãos dadas e nos fazem pensar no sentido dos julgamentos. Porque a realidade é apenas a realidade da cabeça de cada um

“As Bruxas de Salém” é uma peça que nos faz questionar todos os movimentos das massas e nos mostra tão bem que a ignorância continua inerente aos cérebros humanos. O “diz que disse” que se espalha e que leva a tantas decisões erradas, não nos parece uma ideia de sociedade assim tão ultrapassada.

Esta obra obriga o espectador a refletir porque não dá respostas. Porque ficamos a pensar se de nós se trata a peça. Se somos bons ou se somos maus. É uma história assustadoramente atual e que patenteia o quanto estagnamos no tempo. Talvez seja essa a sina do ser humano, pelo menos para Arthur Miller.

Na versão do encenador Nuno Cardoso, o cinema e o teatro cruzam-se em palco. O cenário conta a história tanto quanto as falas dos atores, revelando o ambiente sombrio e de expectativa que vai caracterizar toda a peça. Este cenário, coberto de árvores despidas, faz-nos entrar dentro da história e sentir que somos habitantes de Salém. Entrelaçados aos elementos cénicos, aparecem excertos pré-gravados para nos mostrar a parte cinematográfica da encenação. 

Fazem parte do elenco atores residentes do Teatro Nacional São João, como Joana Carvalho, Jorge Mota, Lisa Reis, Patrícia Queirós, Paulo Freixinho e Pedro Frias. Juntam-se a eles as atrizes Ana Brandão e Carolina Amaral e os atores Mário Santos, Nuno Nunes e Sérgio Sá Cunha.

As atuações destes artistas elevam a peça, já macabra, a um outro patamar. A frieza de Carolina Amaral, que interpreta Abigail Williams, encaixa perfeitamente na falta de temperamento da personagem de Pedro Frias, John Proctor. São estas duas personagens a chave da peça, que nos confundem, mas que nos fazem sentir que valeu a pena as mais de duas horas de espetáculo.

Nuno Cardoso, diretor artístico do Teatro, manteve-se na sua típica linha de condução que assenta na crítica social, já patente no “Ensaio Sobre a Cegueira”, peça estreada no ano passado, que partilha o dilema da vida em comunidade com “As Bruxas de Salém”. A verdade é uma, o encenador acertou mais uma vez nas suas escolhas, tendo mantido as didascálias originais deixadas por Arthur Miller.

Somos os filhos das bruxas porque vivemos exatamente da mesma forma que elas. Sobre acusações constantes, apontamos o dedo achando que somos o bem, podendo ser a raiz do mal. Somos os filhos das bruxas porque viver em comunidade foi e sempre será sobre a injustiça. Ou seja, a justiça de uns é a sentença de outros. Somos os filhos das bruxas porque o poder é tão forte como o de antes e não o podemos deter. Em 1692 foram as bruxas, na década de 50 os comunistas e hoje em dia tantos outros que lutam contra os seus sistemas.

Cada um sabe da sua verdade. Esta, para mim, é a maior lição a retirar do espetáculo. De como podemos ser alienados, e convencidos a pensar algo por alguém no poder. Mas, a realidade é uma, como diz o ditado, “a cada cabeça sua sentença”.

Artigo por Carolina Paredes

Fotografia por Joana Vale