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Mundo Novo

Tons de racismo

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Ilustração de Ângela Pereira

Deparamo-nos com uma ascensão de crimes e manifestações motivados por discriminação e ódio racial, onde se destacam as ameaças à associação SOS Racismo e também a deputadas, entre as quais Joacine Katar Moreira e Mariana Mortágua. Dias antes, uma manifestação ultranacionalista tomou lugar em frente à sede da SOS Racismo, onde os simpatizantes neonazis cobriram a cara com máscaras brancas, remetendo para o movimento Ku Klux Klan. Estes acontecimentos em Portugal estão em linha com eventos em todo o mundo como o movimento Black Lives Matter, que começou em 2013 nos Estados Unidos da América, inicialmente um hashtag utilizado para identificar e partilhar casos de violência e brutalidade policial dirigidos a pessoas negras. Em 2020, com o impacto da morte de George Floyd, tornou-se um movimento internacional dedicado ao combate do racismo e da brutalidade policial.

Trata-se de um problema que tem sofrido algumas alterações e destaque ao longo do tempo, estando relacionado com a evolução da tecnologia e da sociedade. Em relação aos possíveis motivos do aumento de brutalidade policial e atos racistas, considera-se que, a nível internacional, está associado ao aumento de manifestações e simpatizantes de partidos de extrema-direita, que publicamente apoiam ideais de nacionalismo extremo e acabam por louvar o preconceito e racismo. No entanto, não é o único possível motivo deste problema. Para analisar e explorar este tema, o JUP contou com a perspetiva do escritor Rui Zink e de Marta Pereira, da direção da SOS Racismo.

 

Rui Zink

Existe uma correlação entre racismo e educação?

A educação é quase sempre melhor que a ignorância. Ao contrário da ignorância, a educação ajuda a perceber que não temos sempre razão.

 

Considera que a subida da extrema direita em vários países está ligada ao racismo? Há uma regressão civilizacional nesse aspeto, na Europa, desde o fim da 2.ª Guerra Mundial?

Não formularia a pergunta dessa maneira. Já vimos que o progresso não é uma linha direita, é mais em espiral – nunca se repete da mesma maneira, mas tende a voltar a impulsos semelhantes. O racismo de hoje é distinto do de há 50 anos, porque já não é legitimado socialmente da mesma maneira. Hoje até os racistas mais primários sabem que podem ser censurados (e até punidos) por dizerem ou agirem como tal. Mas podem voltar maluquices parecidas. Na ditadura, a noção de superioridade racial era socialmente aceite – os brancos educadores e os outros dóceis guiáveis (“era para o bem deles” e “eles gostavam de nós”). Hoje a lei pune comportamentos racistas, por isso têm de ser mais sonsos. Os que se consideram racistas e agem como tal (o sociopata sádico que pisou o pescoço de George Floyd durante oito minutos) são raros. Já o homem que não se acha racista mas fica nervoso quando vê um negro é mais comum. Digamos que o polícia que matou George Floyd é um racista voluntário e o que disparou sete vezes nas costas de Jacob Blake é um racista involuntário.

 

As pessoas são mais racistas hoje do que há 20 anos? Se sim, será impacto das redes sociais, que funcionam como um amplificador de ideias, tanto boas como más?

As pessoas não são “mais racistas” hoje que há 20 anos. A sociedade até está mais aberta. Mas, com o passar do tempo, está a voltar a ter voz a falta de vergonha. Na Alemanha, durante décadas, dizer a mais pequena coisa nazi era crime. Agora, com a reunificação, as novas gerações esquecem o passado, até com a moda de relativizar os crimes inauditos do nazismo. Mas o avozinho que votou no Hitler é obviamente mais racista que o neto que escreve nas caixas de comentários.

 

Será necessário utilizar palavras alternativas para evitar ser “racista ou será melhor normalizar?

A sociedade portuguesa começa hoje a confrontar os seus fantasmas – e isso dói a muitos. Mas é um processo. Em 1975 havia uma palavra horrível: “escarumba”. Essa palavra desapareceu e isso é um bom sinal. Como com o juiz Neto de Moura: o espanto dele é o seu “bom senso” não ser hoje aplaudido. Hoje um negro como o Marega ou um cigano como o Quaresma respondem – e os brancos comentadores de futebol Rui Santos e André Ventura num primeiro momento disseram alarvidades, mas depois encolheram-se. Mas não é agradável para ninguém perder poder. E a sociedade aberta faz muita gente sentir que perde o pouco poder que tinha. “Agora é tudo dos maricas, ou das gajas, ou dos pretos” é um lamento comum – e a extrema direita explora esse ressabiado. Tom Jobim dizia que os desafinados também têm coração, e a extrema-direita sabe que os ressabiados também votam.

 

“hoje quem não tinha voz começa a tê-la, e isso perturba quem estava habituado a falar sozinho”

 

Que imagem do futuro tem em relação a este tema: mais ou menos pessimista?

Estou otimista, sempre, a médio e longo prazo. A curto prazo, nem por isso. Acho que esta vai ser a década do retrocesso e da febre autocrata. Sobretudo se Trump for reeleito.

 

Na sua perspetiva, haverá uma diferença notória em relação ao racismo (e também em termos políticos), em pessoas de gerações diferentes?

Uma sociedade tem sempre de tudo. O que define um regime é a dominante. De momento, as democracias continuam a brilhar. Mas uma série de atos violentos pode deitar tudo por terra. As novas gerações são, no geral, mais bem preparadas, mas também têm menos memória.

 

Há algum livro ou filme em particular que lhe tenha tocado?

Invictus, de Clint Eastwood. Parece-me bem pedagógico.

 

“os racistas fazem-se de sonsos. Isso torna-os perigosos, mas mostra que sabem que ainda não têm o poder que gostariam de ter”

 

James Baldwin, no filme/documentário ” I Am Not Your Negro”, refere o seguinte: “you never had to look at me. I had to look at you. I know more about you than you know about me. Not everything that is faced can be changed; but nothing can be changed until it is faced”. Será que um dos obstáculos e, ao mesmo tempo, uma das soluções para combater o racismo é a consciencialização?

Sim. O Baldwin é muito bom e esse documentário uma maravilha. É ridículo e absurdo eu concluir que não há assédio feio na rua a moças de 12 anos porque eu, Rui, nunca fui assediado. Mas é assim que muita gente funciona. A leitura e a educação em princípio ajudam-nos a ver os outros, a sair do solipsismo. O lugar da fala é importante: hoje quem não tinha voz começa a tê-la, e isso perturba quem estava habituado a falar sozinho. O comportamento soez (inclusive à esquerda) para com Joacine é um sintoma. O jornal Público até fez uma inenarrável BD, sem dar conta – porque é mais fácil ver os erros nos outros do que em nós. Ela sem rosto, ele com lentes e traços que dão olhos e humanizam. Ela a gritar, ele sereno. Ela desequilibrada, ele equilibrado, agarrando a folha com ambas as mãos, numa simetria harmoniosa. Um mimo, porque não é no Diabo mas no mais bem-pensante dos jornais portugueses.

 

Será também importante neste tema a popularidade? Uma preguiça de refletir sobre ideais próprios e o facilitismo de seguir algo que outra pessoa disse, só por ter popularidade?

Bom, vivemos na era mediática. A chegada ao poder de Trump teve um efeito devastador, tal como a de Obama teve um efeito inspirador. Ter um bruto malcriado sem escrúpulos à frente do mais poderoso país do mundo legitima os analfabetos tipo Bolsonaro. Um senhor da KKK foi claro: “regressamos ao poder”. Mas, se acho cómicas as manifs por cá a dizer “Portugal não é racista”, isso é apesar de tudo menos mau do que ter uma manif em que gritam slogans racistas e haja tarjas com “morte aos estrangeiros”. Por enquanto, os racistas fazem-se de sonsos. Isso torna-os perigosos, mas mostra que sabem que ainda não têm o poder que gostariam de ter.

 

Marta Pereira

George Floyd é um dos nomes mais sonantes de 2020, pelo acontecimento, pela cor e pelas circunstâncias. Bruno Candé também foi vítima do racismo e morreu, em Portugal. Há temas que só ganham força na “praça pública”, quando têm rosto?

O racismo é um fenómeno que se tende a pessoalizar, ou seja, quando uma organização como a SOS ou outras afirmam que Portugal é um país racista, as pessoas pessoalizam, sentem-se ofendidas – “estão a dizer que eu sou racista”. Portanto, é um tema que é de difícil discussão. Enquanto não fizermos essa desconstrução, as pessoas têm a tendência a achar que estamos a acusá-las diretamente. Isto para dizer que eu acho que é um fenómeno que tem de ser visível para as pessoas o compreenderem. É a ideia do “in your face”, ou seja, eu tenho que ver alguém ser agredido pela polícia para perceber que [o racismo] está ali. Nos simples relatos e denúncias que o SOS Racismo faz constantemente, para manter o assunto na ordem no dia, as pessoas não se retratam, são notícia, mas não têm rosto. Mas é a realidade, não somos nós que estamos à caça de gambuzinos.

 

As redes sociais foram inundadas de hashtags, fotografias negras e palavras de ordem. Que importância constitui esta mobilização?

 

Eu acho que tem muito a ver com o poder que a comunicação social tem. Os problemas raciais não começaram agora, começaram há mais de 500 anos. Temos a tendência para achar que isto está a acontecer agora, mas isto acontece sempre. Há centenas, milhares de vítimas todos os dias, são pessoas invisíveis, as tais que aparecem numa notícia, mas a gente não lhe vê a cara, mas que são espancadas pela polícia, que são vítimas de racismo diário. A comunicação social decide quando é que estas notícias são importante, mas da mesma forma que estão hoje na ordem do dia, amanhã deixam de estar – é o que está a acontecer. Cabe-nos a nós enquanto sociedade civil manter isto na ordem do dia.

A pressão das redes sociais também promove discussões à volta disto, para o bem e para o mal, e acho que foi isso que aconteceu, as pessoas perceberam que isto é sério e quiseram fazer-se ouvir. Não quero parecer pessimista, mas temo que seja esquecido. Outras coisas ganham outro protagonismo, seja a COVID-19 seja a situação económica e uma nova crise financeira e por aí fora. Cabe às instituições e ao governo manter a questão da discriminação como uma prioridade. É importante que as pessoas se sintam motivadas a dar voz e ocupar as ruas.

 

Na sua opinião, qual o motivo que levou ao aumento e concentração de ameaças e paradas racistas?

 O racismo está na ordem do dia, portanto é um problema que é necessário resolver e quem acha que ele não existe sente-se ameaçado. Os racistas, quem acha que nós andamos atrás do bicho papão, sentem-se ameaçados pela discussão que isto traz, pela consciencialização das pessoas para um facto que é real. O slogan é sempre o mesmo, “Portugal não é um país racista”. Parece-me óbvio que Portugal é um país racista, tem um passado colonial e por aí fora, portanto, estamos a discutir o que já nem se pode discutir. É ponto assente e todas as organizações internacionais que escrevem relatórios acerca da discriminação, apontam inúmeros problemas na sociedade portuguesa e o racismo é uma delas.

 

O aumento de simpatizantes do Chega e ajuntamentos promovidos pelo partido estarão relacionados com o aumento de paradas racistas?

É evidente… Temos pessoas no governo que promovem um discurso que chamam de nacionalista, mas que eu acho que é um chavão para o neofascismo. Nacionalismo não é nada mais do que o fascismo de cara lavada. Temos na Rússia movimentos LGBT em que são perseguidos e as pessoas são mortas. Enquanto tivermos políticos em países importantes no mundo a fazer passar essa mensagem, há uma validação. Ou seja, esta malta que antes se calhar até tinha vergonha de dizer que era racista agora não tem vergonha nenhuma, porque o mundo autoriza a sua opinião como sendo uma opinião válida, como se não tivéssemos que promover os direitos humanos e o direito à liberdade de cada um. Isto é evidentemente um retrocesso civilizacional. É óbvio que o Chega e outros movimentos são uma resposta clara a uma validação que tantos governos com imensos tiques totalitaristas têm, a começar no Trump.

A Europa tem aí muita culpa, nomeadamente com a questão dos refugiados. Nós dizemos uma coisa e fazemos outra. As minorias são sempre a resposta para tudo o que está mal na nossa vida, a culpa é sempre dos outros e nunca é nossa. É muito mais confortável e fácil estarmos por cima, termos o poder do que sermos solidários. Solidariedade é uma coisa difícil de se conseguir e é uma mensagem difícil de passar. É mais fácil passar a mensagem populista politicamente do que outra qualquer.

 

Até agora, na sua perspetiva, qual foi o acontecimento mais marcante?

É um bocadinho redutor dizer que há um acontecimento. O que estamos a ver em Portugal é um fenómeno que se vê nos outros países, organizações de cariz identitário que estão de facto a fazer este trabalho de trazer à praça pública estas questões e isso para mim é um fenómeno muito importante nos últimos anos que em Portugal não acontecia e começou a acontecer. E são obviamente esses movimentos que muitas vezes de uma forma inorgânica conseguem mobilizar muita gente nas redes sociais. O facto de  George Floyd ser filmado a sucumbir à violência policial, o Bruno Candé e a Claúdia Simões… É evidente que não podemos comparar-nos com os EUA ou com outro país qualquer, porque acho que nem isso interessa. Os fenómenos são o que são, mas eu diria que o aparecimento destas organizações, muitas delas informais ainda, estão a fazer este percurso por dentro. Eu acho que tem muito mais valor ser uma organização cigana a defender os seus direitos e por aí fora. Cabe-nos também a nós ajudar estes movimentos a continuar o seu caminho.

 

Há quem defenda que Portugal não é um país racista, o que lhe diz a experiência?

Para mim é mais que evidente. Eu sou antirracista por natureza, portanto como é óbvio não posso concordar com essa afirmação; para mim é contranatura. É óbvio que quem diz isso não quer que o debate seja feito, a ideia é não promover o diálogo. Estamos a recuar numa coisa que é evidente. Por muito que seja desconfortável, estas coisas vão ter que ser discutidas mais dia menos dia. O colonialismo, a guerra colonial, a questão dos retornados, tudo isto são feridas ainda muito recentes e que nunca foram discutidas seriamentes. Nós não sabemos lidar bem com isto e por isso é que é um fenómeno tão difícil de combater. Não conseguimos aceitar que discriminamos e que somos privilegiados. Eu sou branca, sou privilegiada e tenho que o assumir para fazer o meu caminho. É um trabalho coletivo mas também é um trabalho individual, por isso é que é tão díficil. Mas é de facto necessário fazê-lo e enquanto houver vozes a dizer que Portugal não é um país racista é evidente que é bem mais difícil.

 

A associação SOS Racismo existe desde 1990, tendo no fundo como principal objetivo a luta pela igualdade. Sente que, 30 anos depois, a “conquista” deste fim está mais perto?

Eu acho que temos bons indicadores, mas não, não estamos mais perto. As desigualdades mantêm-se, tivemos pequenas vitórias em termos legais, a questão da lei da nacionalidade e da discriminação racial. A nível legislativo conseguimos alguma coisa, mas há quase tudo por fazer. Não é ser pessimista ou otimista, mas acho que nós nunca vamos deixar de discriminar as outras pessoas ou de as tentar meter em caixinhas. A categorização nem sempre é uma coisa má. Aquela pessoa pode ser diferente de mim, mas eu não sou melhor do que ela. Esse será o caminho.