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Artigo de Opinião

Almada no pequeno ecrã

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Celebrou-se, no último dia 15 de junho, cinquenta anos da morte de José de Almada Negreiros. O meu tributo surge na forma de recensão crítica.

O Teatro Nacional de São João (TNSJ) tem vindo a transmitir, durante os fins de semana, performances do seu arquivo, guardadas em vídeo – diria mesmo em formato cinematográfico. Hoje trago adaptações teatrais inspiradas num autor que me é muito querido – José de Almada Negreiros. Começo esta recensão com Al mada nada de Ricardo Pais, obra que, com certeza, seria motivo de orgulho do próprio ‘Narciso do Egito’ e opinarei também acerca de Exactamente Antunes, de Jacinto Lucas Pires.

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Al mada nada ou “Teatro é facilidade ali, à vista de todos.”

Demonstrando a unidade da obra de Almada Negreiros, mesclando elementos tradicionais e contemporâneos da cultura portuguesa  – como a indumentária, a percussão (hoje muito usada em performances) e o break dance -, Al mada nada inicia com a expressividade corporal, dimensão central na arte do poeta d’Orpheu. 

Inspirando-se principalmente, mas não só, nos ‘Saltimbancos’, a peça dá-nos a conhecer não só esta obra literária como Conferência nº. 1 Orpheu 1915-1965, texto que celebra os cinquenta anos da fundação da revista do primeiro modernismo português. Outras dimensões – a rítmica, a performática e a visual – da obra almadina não deixaram de ser transformadas pelo trabalho poético e pela expressão artística de Ricardo Pais, aspeto que traz originalidade ao palco. Reminiscências de outras obras de Almada, produções estas que denotam autotextualidades várias, surgiram naturalmente – prova de que a produção de Al mada nada não foi apenas uma conjunção intuitiva de várias citações coladas, mas de um estudo aprofundado e cuidado da globalidade da obra.

A indumentária, inspirada nos ‘Saltimbancos’, foi muito bem escolhida. As opções contemporâneas, destas se destacando o ritmo e as músicas que compuseram o reportório da performance, também o foram. O humor poderia ter estado mais presente no espetáculo, embora apareça pontual e inicialmente com o mimetismo de saltimbanco Pierrot-Charlot. A dança da cigana não só sintetiza a conhecida fórmula 1+1=1, presente em Deseja-se Mulher, como remete para textos anteriores. Dos únicos elementos que não estão presentes, nem pontual nem sistematicamente, – e deveriam figurar de alguma maneira no drama – destaca-se a relação 9/10, símbolo matemático de uma linguagem universal, porque concreta. A Histoire du Portugal par Coeur também deveria ter entrado no repertório de textos, uma vez que, como a Professora Doutora Celina Silva demonstrou na sua dissertação de mestrado, neste poema já se nota a maturidade na construção de uma poética da ingenuidade, i. e., uma busca das origens pátria, pessoal e artística.

A gravação da performance ficou perfeita, não retirando – quase – nada ao espetáculo; e sendo uma produção  cinematográfica só lhe resta o travo que apenas o drama pode concretizar – a pouca distância entre ator e espectador.

O auge, o momento de êxtase da peça é, na minha opinião, a interpretação de uma passagem d’A Invenção do Dia Claro: «Mãe, passa as tuas mãos pela minha cabeça, quando passas as tuas mãos pela minha cabeça é tudo tão verdade!». Caso a Histoire tivesse figurado o corpus de textos evocados em Al mada nada, a compreensão da poética almadina ficaria completa e evidenciada na peça de Ricardo Pais.

Em suma, Al mada nada, peça una, lírica e profunda, comprova que também os corpos contam histórias.

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Exactamente Antunes ou Nome de Guerra?

Partindo de Nome de Guerra, Exactamente Antunes é uma dramatização do romance, no mínimo, ambígua. Baseada num discurso melodramático formulado, por sua vez, por atores mal escolhidos, a peça, apesar de quase totalmente retirada do romance, não se parece nada com Almada Negreiros. E isto não seria um problema caso fosse bem feito, mas não o é. Só depois de me ter confrontado com o manual de leitura entendi que o drama não é uma blague, i. e., não é brincadeira voluntária, mas um trabalho mal conseguido.

O conceito de ‘ingenuidade’ (a necessidade de regressar às origens) foi confundido com o de ser-se infantil. E eis uma citação que o comprova: «O Picasso disse qualquer coisa assim: “Quando era criança, desenhava como Rafael, mas passei o resto da vida a aprender a desenhar como uma criança”. E quando vemos as últimas coisas que ele produziu, aqueles rabiscos coloridos, quase que os tomamos por desenhos de criança. No fundo, toda a literatura e todo o teatro têm a ver com essa busca, ou com essa construção da ingenuidade, da inocência. Tanto do lado do ator como do lado do autor, trata‑se de reaver esse pela primeira vez das coisas. Os encenadores dizem muitas vezes aos atores: “Tu estás a dizer como já sabes que vais dizer, agora diz de novo”. É um bocado o que acontece no palco de quem escreve: como é que esta palavra pode ser pela primeira vez? Talvez se eu a retirar e colocar noutra sala, onde ela parecia não pertencer, isso possa acontecer.». Por meio do exagero, do melodrama, a ‘construção da ingenuidade’ transformou-se num achado do ridículo.

Assim sendo e estando o drama construído sobre uma ação-enunciação hiperbólica, toda a peça se auto-hipertrofiou. Os elementos que funcionaram bem foram meramente os secundários, como a indumentária (incluindo a simulação de nudez), o jogo cénico, os títulos dos capítulos a descrever a ação. E sabe-se que este exagero é intencional: «(…) a palavra é um acontecimento. Não é uma coisa que já vem preparada, mastigada, deglutida, não é uma palavra de microfones e de televisões: é um acontecimento.». Acontece que, para Almada, o teatro é ver e não ouvir, ponto final.

O trabalho das personagens femininas foi, também, dual. Apesar de Maria ser ausente no romance, Jacinto Lucas Pires decidiu dar-lhe uma outra dimensão que até funcionou bem – uma Maria que atormenta a cabeça de Antunes, mas que também lhe dá dinheiro, uma Maria que não é santa nem diabo, mas qualquer-coisa-de-intermédio. No entanto, esta construção desmorona no final, quando a personagem morre – supostamente de desgosto de amor. Como é que alguém tão forte morre de amor? No romance, se bem me lembro, Maria morre por causa da ausência de Antunes. No drama, então, não há motivo para a morte de Maria.

Antunes é Antunes até ao fim. Não há nome de guerra porque Judite é apenas uma mulher coscuvilheira e Antunes não é nem Antunes, nem Luís. A Judite do romance é determinada, sabe o que quer, seduz o Antunes e transforma-o – daí os dois nomes porque o personagem é conhecido. Antunes é uma pessoa dividida em dois, Judite usa-o para sobreviver e nada disto está presente no drama porque 1) Antunes não é Luís e Judite é obrigada a dormir com Antunes, não o faz de livre vontade.

Por fim, não havia necessidade de cantares desafinados, nem de atores excessivamente velhos para o papel de Antunes e de Judite. No manual de leitura lê-se: «O que vos conduziu a essa escolha [de um ator mais velho para o papel de Antunes]? R.: Pode ser uma memória ou um sonho. Mas tem a ver também com essa coisa muito portuguesa que é a incapacidade de agir, um certo atavismo, e de isso nos envelhecer. Mas a inadaptabilidade a um novo lugar, que faz a história do Antunes, é algo que acontece em todas as idades, não é apenas uma coisa da passagem à idade adulta. Quer dizer, a passagem à idade adulta faz‑se múltiplas vezes: o Almada fala do segundo nascimento, do terceiro nascimento…». E eu pergunto-me o quão explícita esta ideia fica quando se vê a peça.

Em suma, palavra pronunciada em exagero, canções portuguesas em desalinho, contemporaneidade em falta, personagens des-construídas quase arbitrariamente, atores mais velhos do que as personagens e nenhum nome: nem o de Antunes, nem o de Luís, nem o de Judite.

Nesta peça, a única guerra foi a de a ver até ao fim.

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