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Devaneios

Ser e Essência

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Era um final de tarde de uma quinta-feira de primavera banal. Apesar do horário tardio, o céu continuava azul-celeste. Estava saindo da faculdade, junto com uma amiga minha. Normalmente eu ia embora junto com ela, pois a casa dela ficava no caminho da minha. Estávamos apenas a jogar conversa fora, como sempre fizemos, até que um assunto bobo surgiu: eu tinha interesse numa colega de classe em comum e pedi algumas dicas sobre como chamar a atenção dela. A minha amiga respondeu de uma forma simples: “Sê tu mesmo, Matheus.” Além de achar a frase super batida, eu nunca entendi o significado dela. É claro que a mensagem é óbvia: o importante é seres autêntico, o resto virá naturalmente. Mas a questão que sempre me preocupou foi exatamente essa: Como é que uma pessoa pode ser autêntica?

Todos nós temos os nossos interesses, personalidades, hobbies e formas de nos expressar. Entretanto, não seriam todas essas características mutáveis e dependentes das circunstâncias? Quando penso nisso, sempre acabo por me sentir cada vez menos autêntico: minha paixão pela música começou desde que o meu pai colocava o Greatest Hits I dos Queen para ouvir no carro, meu amor por contar histórias veio desde pequeno quando minha mãe lia os livros da Ruth Rocha, autora brasileira de contos infantis; meu tremendo gosto pelo futebol veio desde o berço quando vesti um macacão do Palmeiras logo quando eu nasci. Posso dizer outros milhões de exemplos de como as pessoas à minha volta me influenciam e me moldaram a ser a pessoa que eu sou. E repare que os meus interesses são absolutamente ordinários: qualquer pessoa gosta de música e não sou o único que ama escrever e jogar futebol (e dou Graças a Deus por isso, não consigo imaginar um mundo sem Cem Anos de Solidão e a Libertadores). Por esses motivos todos, sempre acabo por me questionar: O que é a nossa essência, afinal de contas?

Para além disso tudo, ainda existe o carácter social envolvido na questão da identidade. Até que ponto se adequar a um certo ambiente no qual estamos inseridos não dilui as nossas características? É certo que não somos os mesmos quando estamos do lado dos pais e quando estamos numa festa com os amigos. Posto isto, ainda me questiono: Qual é a linha que divide algo como apenas uma ramificação da nossa personalidade para a perda da nossa essência? Por muitos anos da minha vida fui incapaz de mostrar qualquer emoção negativa fora do espaço privado. Sempre fui uma pessoa muito emotiva e, por isso, era alvo de chacota entre os meus colegas. Quase perdi um lado muito importante do meu senso próprio por ter de me adaptar a um ambiente hostil. E muitas vezes fiz isso: me contorcia até me encaixar num padrão, numa forma, num estilo. Contanto que os outros não me excluíssem, estava tudo ótimo: esse era o preço que eu deveria pagar para ganhar um pouco de atenção. No final do dia, me sentia uma figura vazia, um corpo sem alma, alma essa que foi vendida aos poucos, nos mínimos detalhes: seja para ganhar um sorriso da menina mais linda da turma até para agradar um “amigo” negligente com uma piada autodepreciativa. E foi assim por muito tempo… até eu conhecer essa minha amiga lá do início da história.

Aos poucos, fui conhecendo novos amigos, criando novos laços, tendo mais experiências e ao longo disso tudo, fui coletando os cacos que sobraram de um jovem partido. Ainda continuo a coletar os meus cacos e jamais vou ser a mesma pessoa de antes. Mas fico feliz por isso: apesar de tudo que eu passei, também cometi muitos erros, machuquei pessoas ao meu redor e não estive no meu melhor. Isso faz parte da natureza humana. A mudança como estado eterno do ser humano é um pensamento que ecoa desde a Antiguidade: para Heráclito, “tudo flui como um rio”, estamos em constante movimento, em constante transformação. E assim como um rio se encontra com um mar, nós somos banhados pela influência dos outros e vice-versa. O que seria de nós se não tivéssemos um amigo para apresentar um álbum novo ou um parente que quer ver um filme novo no cinema ou até um ato pequeno como dizer “Sê tu mesmo.”?

E assim foi naquela quinta-feira de primavera que eu finalmente compreendi o que a minha amiga estava falando: a autenticidade não é algo fixo, imutável. Pelo contrário, ser autêntico é mudar! No fundo, a igualdade é o oposto da indiferença: compreender que a característica fundamental que nos une como seres humanos é a capacidade de estar em constante transformação é o início para olharmos ao próximo com mais compaixão e menos indiferença. Por muito tempo me sentia incapaz de mudar, de viver apenas no piloto automático e aceitar qualquer máscara que me oferecessem para sobreviver ao dia. Mesmo com toda essa reflexão, tenho a noção que momentos assim ainda vão continuar existindo. Em momentos assim, tenho de me lembrar de um conselho simples, por vezes batido, mas de um impacto imensurável na minha vida: “Sê tu mesmo”.

Artigo da autoria de Matheus Hirakawa Bissacot

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