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Opinião

A Escuridão na Orla da Cidade

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Imagem: Juan Davila (Unsplash)

Crónica inspirada no álbum Darkness on the Edge Of Town, lançado em 1978 por Bruce Springsteen.

Enquanto estacionava o seu velho Opel Commodore na oficina de seu pai, Breno notou que pequenas gotas de chuvas caíram sobre seu carro. Já era a terceira semana seguida que aquele céu nublado e fúnebre cobria toda a cidade. Apesar de não gostar do clima, ele já havia se acostumado. Ao sair do carro, Breno tirou o seu kispo e foi direto em direção ao pequeno escritório no lado direito da oficina. Ao entrar naquela sala apertada, Breno pousou o seu casaco sobre a cadeira e, antes de sentar, soltou um pequeno suspiro.

No momento em que encarava o seu computador arcaico e via as despesas do mês passado, Breno ouviu três batidas fortes na porta. Após ouvir a voz tipicamente grossa e áspera do amigo, Salvador entra e diz: “É bom te ver de novo, chefe!”; Breno olha para o seu assistente, esboça um sorriso de lado e volta a olhar para o computador. Ao se deparar com aquele humor apático, o mecânico sugere uma pequena pausa para o café. Apesar da sua consciência saber que pouco trabalho tinha feito, Breno jamais conseguiria resistir àquela oferta. Enquanto se levantava, ele disse: “‘Tás a fazer isso só pra não trabalhares agora que eu sei” e riu com o companheiro.

Ambos buscaram os seus cafés numa pequena máquina que se encontrava ao lado da mesa de Breno e decidiram ir lá fora apanhar um ar. Ao ver o céu cinzento e enevoado, Breno rapidamente reparou que a chuva havia aumentado. Salvador notou que seu amigo parecia disperso ao observar aquele cenário e aproveitou para soltar um breve comentário: “Só espero que essa chuva diminua a noite.”; “Do jeito que as coisas andam, a chuva tende é a piorar…” – respondeu Breno de forma honesta.

Logo após esse comentário, os dois começaram a observar com mais detalhes aquela vista. “Salva, é impressão minha ou há uma mancha no céu?” – perguntou o chefe, preocupado. O mecânico respondeu com outra pergunta: “Aonde?”; Breno aponta para o horizonte. Salvador procurou aquela suposta mancha, mas sem sucesso. Num tom sarcástico, ele comentou: “Ou a tua tentativa de me enganar falhou ou tu precisas de uns óculos.” Apesar da fala do seu amigo, Breno continuava focado no que ele tinha visto. A mancha era bem pequena, mas era notável o suficiente para chamar bastante atenção. Depois de alguns segundos a encarar fixamente aquela mancha escura, uma memória forte e repentina cruzou a sua mente.

Ele, ainda miúdo, estava sentado em sua sala de estar. Na janela, o céu escuro estava distorcido pelas gotas d’água. Era um local apertado, um pouco desconfortável, mas digno o suficiente para se chamar de casa. Seu pai, Sr. Douglas, abre a porta. Breno saiu correndo para abraçá-lo. Ao olhar para cima, o filho observou as enormes olheiras do pai e um olhar vazio. Ao lembrar-se daqueles olhos frios e atormentados, Breno começou a ter dificuldades em respirar. Aquilo parecia ter se afixado em sua cabeça. Essa memória só começou a se apagar quando Salvador perguntou se o chefe estava bem. Tentando recuperar o fôlego, Breno diz que ele estava bem, apesar de um pouco cansado.

Algumas horas passaram-se depois do incidente. A oficina já tinha atendido alguns clientes. Breno poucas vezes saía de seu escritório. Não só ele sabia que Salvador era um exímio mecânico, tendo em vista que ambos costumavam arranjar carros juntos, e daria conta do recado, como também o trabalho dentro do escritório para manter o estabelecimento de pé era numeroso. Contudo, num dos momentos raros onde Breno efetivamente saiu de seu escritório, um momento que só pode ser descrito como pura coincidência havia ocorrido. Um homem esguio, com cabelos finos e aparência frágil havia entrado no recinto. Breno identificou o imponente bigode do senhor e isso foi o suficiente para o reconhecê-lo.

Com uma entoação alegre, Breno foi cumprimentar o homem, que observava com gosto o Opel Commodore estacionado. “Seu Manuel, o que fazes aqui?” – disse Breno num tom alegre e de surpresa. “Vim ver como as coisas estavam.” – respondeu o senhor de idade com uma voz fraca, mas igualmente entusiasmada – “Então, como anda o velho Douglas?”; “E-ele já está um pouco melhor…” – falou Breno de forma hesitante. Ao mesmo tempo que Breno ainda pensava naquela pergunta, Seu Manuel continuava a apreciar o carro a sua frente. “Lembro-me quando o teu pai comprou esse carro.” – disse o velho com um tom nostálgico – “Ele economizou cada cêntimo para tê-lo… Ao menos ele continua em boas mãos.” Ao terminar a frase, Seu Manuel colocou a mão no ombro de Breno, encarou-o nos olhos e deu um sorriso. O homem deu às melhoras ao seu querido amigo Douglas e à passos curtos foi embora.

Agora era Breno quem olhava com carinho aquele carro. Contudo, ao olhar o seu reflexo refletido na porta do carro, ele notou algo estranho. Após focar a sua atenção naquela estranha imagem, ele mais uma vez viu aquela mancha que estava no céu. Aquela mancha parecia ter aumentado e se tornava mais chamativa ainda. Ao reparar nisso, ele até tentou desviar o olhar, mas não foi o suficiente para que aquele lapso de memórias voltasse a passar diante dos seus olhos.

Era o dia em que ele fazia 18 anos. Depois de uma pequena festa, seu pai o levou para aquela mesma oficina. Após ouvir uma longa, mas emocionante história sobre a origem daquele Commodore, seu pai não só deu a chave do carro, como também deu um forte abraço em Breno. Foi uma das poucas vezes que ele viu aquele homem chorar. Ao lembrar-se das lágrimas do pai, ele próprio começou a lacrimejar e sentiu uma dor forte no peito. Breno demorou algum tempo para se recuperar, mas ele logo levantou-se e limpou o seu rosto.

O céu já havia escurecido quando Salvador avisou o seu chefe que era hora de fechar a oficina. Breno nem tinha visto o tempo passar: depois do segundo incidente, ele só permaneceu sentado e raramente fazia outra coisa para além de ajustar orçamentos, ver estoque e analisar os pedidos dos clientes. Enquanto se levanta com dificuldade de sua cadeira, Breno perguntou como tinha sido o dia de trabalho. Apesar de estar cansado e um pouco sujo, Salvador respondeu com um sorriso no rosto: “Não foi nada mau Breno, tenho de dizer”. Feliz com a notícia e vendo o esforço do amigo, o dono da oficina ofereceu-lhe uma boleia para casa. A oferta foi aceite de muito bom grado.

Por aquelas ruas e curvas passava o fenomenal Opel Commodore herdado por Breno. Para além dele saber todos aqueles caminhos como a própria palma da mão, Breno estava acostumado a fazer voltas em corridas amadoras. O seu amor pelas corridas tinha muito mais em comum com a sua paixão por carros do que pela adrenalina em si. Salvador e ele passavam dias e noites vendo peças metálicas e destrinchando máquinas. Era uma pena que esses dias se acabaram mais cedo do que o esperado. “Já pode virar na próxima esquerda” – avisou Salvador. Breno até chegou a se assustar: ele conhecia tão bem aquela cidade que mesmo estando no piloto automático, fez o caminho certo. Ao estacionar o carro, Salvador despediu e disse “Te cuida, amigo”. O caminho de volta parecia não apresentar nada de mais. Entretanto, uma forte luz vinda do lado direito começou a incomodar Breno. Ao olhar para aquele enorme letreiro, ele imediatamente foi ao estacionamento, parou o carro e entrou no estabelecimento.

Breno sentou-se numa mesa perto do balcão e se arrependeu de suas ações. Após tantos acontecimentos naquele dia, ele parecia ter pedido a fome e o apetite. Quando uma das atendentes foi perguntar o pedido a ele, Breno respondeu de forma muito breve que gostaria de uma tosta-mista e uma chávena de café. Segundos depois, o homem parecia observar cada rosto e figura que trabalhava naquele lugar, à procura de uma única cara familiar. Sua procura foi tão intensa que Breno nem tinha reparado que o seu prato havia chegado.

Ao dar uma mordida em seu “jantar”, uma alegria momentânea parecia tomar conta de seu corpo. É uma pena que esse sentimento acabara no segundo em que ele deu a última mordida na sua tosta-mista. Ao menos, ele tinha o seu café para tomar. Enquanto pousava a sua chávena, Breno reparou que aquele recipiente meio vazio continha algo muito peculiar. O líquido parecia escuro demais, quase semelhante ao petróleo. Ele observou aquilo aos pormenores e quando se apercebeu que a mancha havia tomado conta de toda a sua visão, largou imediatamente a chávena de café. Por sorte, o café estava morno e pouco se espalhou pela mesa. Ao ouvir o barulho, uma atendente veio ajudá-lo. Não era quem ele estava à procura.

Apesar de ter conseguido evitar que a escuridão tomasse conta de sua mente, aquilo parecia ter abalado todo o corpo de Breno: sua respiração estava pesada, parecia puxar a sua cabeça para baixo. No seu peito, havia uma dor que ele gostaria de arrancar com uma faca. Ele sentia-se tão fraco que gostaria de apenas explodir, explodir e levar todas as angústias e remorsos que aquela cidade o trouxe junto com ele. A angústia era tão grande que nem reparou quando a atendente tentava chamá-lo pela terceira vez. Quando retomou a sua atenção, Breno agradeceu a ajuda e pediu a conta. Ao sair do restaurante, ele reparou que a mancha escura havia se misturado junto com a chuva. Assustado, ele correu para o seu carro e acelerou sem caminho certo.

O seu Opel Commodore voava pelas estradas da periferia. A estrada começava aos poucos a perder as linhas brancas. Quanto mais ele acelerava, mais as memórias pareciam atordoá-lo. Diante dos seus olhos, a sua vida ao lado de Carol passava bem em sua frente. Todos os momentos com ela aglomeravam-se de forma ilógica. A correria em seu coração e o sangue fervente ao beijá-la pela primeira vez misturava-se com a frustração de ouvir sermões de Carolina acerca de sua decisão de tomar conta da oficina após os problemas de audição do pai. A voz suave quando o seu”docinho” chamava-o para jantar transformou-se num ronco terrível de seu motor quando partiu com o seu carro e deixou sua namorada a chorar na porta de casa. A primeira vez que os olhos de Breno encontraram os olhos de Carol naquele mesmo restaurante de repente se perderam na multidão de vários atendentes anónimos na noite onde ele só pediu uma tosta-mista e um café.

Ele tentou ligar o rádio para evitar qualquer tipo de pensamento, porém sua mente amassava cada parte de seu corpo. Naquela noite, Breno apenas procurava por aqueles momentos onde o mundo parecia estar certo e em harmonia. Contudo, o que ele conseguia achar dentro de suas memórias eram apenas pedaços das coisas em que ele amava: todas despedaçadas pelas mãos do destino e deixadas na areia de um pêndulo.

Breno parecia conduzir por instinto: não sabia para onde fugir de toda aquela dor trazida pelo seu passado e carregada até o presente. Ao olhar em sua volta, tudo havia perdido cor: não havia nada em sua visão para além da escuridão, o som do rádio começava a se tornar ensurdecedor e suas mãos pareciam estremecer no volante. Foi nesse momento que Breno finalmente lembrou-se de um lugar onde ele poderia acabar com toda aquela dor. Com os olhos marejados, Breno falou para si mesmo: “Bom, se ela quiser me encontrar, eu serei facilmente encontrado”. Após chegar na orla da cidade, Breno desceu do seu carro. Ele até tentou procurar o seu casaco, mas depois lembrou-se que o havia esquecido dentro da oficina.

A noite de repente ficou silenciosa. Numa marcha lenta, Breno andava em direção ao penhasco que separava a cidade do abismo. Breno tinha olhos cansados e uma alma indiferente. Afinal de contas, nada mais importava. A escuridão debaixo daquele penhasco parecia chamá-lo. Quando encarou o abismo, ele sentiu que o próprio abismo o encarava de volta. Algo naquela infinita escuridão, naquele buraco sem fundo, naquela pergunta sem resposta foi tudo o que ele precisava de ter visto. Algumas memórias até chegaram a aparecer, mas dessa vez nenhuma delas foi capaz de quebrar o seu espírito. Ao olhar para cima, ele reparou que apesar de chover bastante, algumas estrelas brilhavam no céu. Lágrimas começaram a se perder junto com a chuva.

Enquanto ligava o seu amado Opel Commodore perto do penhasco na orla da cidade, Breno notou que a chuva havia limpado a pouca sujeira que havia em seu carro. Aquelas gotas d’água, que eram bastante finas, não eram o suficiente para cobrir o céu estrelado. Ao entrar no carro, Breno ligou o motor e foi direito para a estrada ir para casa e tomar um banho quente. Ao entrar no seu pequeno, mas confortável apartamento, Breno tirou as suas roupas encharcadas, ligou o chuveiro e, antes de entrar no banho, soltou um grande sorriso.

Artigo da autoria de Matheus Hirakawa Bissacot

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