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Artigo de Opinião

A contradição da explicitação: o consumo do masculino enquanto objeto de desejo homossexual numa sociedade machista-homofóbica

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Arte: A Criação da Adão, Michelangelo (com alterações)

A aparente contradição entre a exploração do apetite pelo masculino e as normas patriarcais-homofóbicas refletem, não apenas numa apropriação descarada do capitalismo sobre os indivíduos, mas também uma complexa relação entre a sexualidade, moralidade e os estereótipos de género promovidos [por anos] na nossa sociedade.

 

Na interseção entre o mercado do consumo de conteúdos tidos como “pervertidos” (Freud) e a sociedade puramente moralista, as revistas de homens pelados sempre desempenharam um papel intrigante ao longo dos anos. Agora, numa era de criadores de conteúdos +18 em plataformas como OnlyFans, Privacy e X (antigo Twitter), o corpo torna-se mercadoria mais uma vez: o fetiche gera cada vez mais lucro numa sociedade que se entrega com força ao consumo do poder na realização do desejo.

A aparente contradição entre a exploração do apetite pelo masculino e as normas patriarcais-homofóbicas refletem, não apenas numa apropriação descarada do capitalismo sobre os indivíduos, mas também uma complexa relação entre a sexualidade, moralidade e os estereótipos de género promovidos [por anos] na nossa sociedade.

Historicamente, revistas de homens pelados, como a G Magazine (Brasil), sempre estiveram ancoradas num contexto social onde a homossexualidade era frequentemente estigmatizada e marginalizada, colocando a sociedade em estado de alerta para resistir à aceitação “aberta” de um mundo com uma diversidade sexual presente. O curioso é que, paradoxalmente, essas revistas sempre encontraram espaço no mercado, revelando uma dinâmica no mínimo curiosa.

Há contradição na explicitação: o passado de revistas recheadas de homens pelados sempre alimentou a exploração do desejo pelo “masculino” numa sociedade abertamente machista e homofóbica.

A apropriação cada vez mais potente do capitalismo neste cenário, revela um jogo de interesses em que o desejo pelo masculino é explorado economicamente, muitas vezes à revelia das normas sociais estabelecidas. Jean Baudrillard, na obra “A Sociedade de Consumo”, argumenta que a sociedade moderna é caracterizada pela produção incessante de signos e imagens que moldam e, por vezes, subvertem as normas culturais.

Nesse contexto, as revistas de homens pelados podem ser consideradas manifestações tangíveis dessa produção de imagens, provocando a expectativa da sociedade machista ao alimentar, e ao mesmo tempo explorar, o desejo masculino como produto a ser consumido, mesmo se portando como uma sociedade puramente homofóbica, machista e para ser ainda mais direto, misógina.

A presença de figuras públicas como jogadores de futebol e celebridades nas páginas dessas revistas, adiciona ainda uma camada extra de complexidade.

O filósofo e teórico social, Michel Foucault, numa de suas obras mais potentes, “História da Sexualidade”, argumenta que as sociedades modernas não reprimem a sexualidade; ao contrário, elas a [re]produzem e a regulam de maneiras específicas. Assim, a participação desses ícones heterossexuais em publicações de revistas como a G Magazine e outras podem ser vistas como uma manifestação dessa regulação, desafiando as fronteiras da sexualidade convencional enquanto, em simultâneo, mantém uma aparência de conformidade.

Um ponto importante é a exclusividade do público-alvo dessas revistas, predominantemente homens, capaz de revelar uma dimensão interessante dessa dinâmica. Afinal, em uma sociedade onde a pornografia, historicamente, fora sempre voltada para o público masculino, a ideia de que as mulheres não podiam consumir pornografia estava intrinsecamente ligada à manutenção das normas de género. Homens podem tudo em todo lugar a todo momento.

Linda Williams, em Hard Core: Power, Pleasure, and the ‘Frenzy of the Visible”, explora como a pornografia sempre se manteve profundamente enraizada em relações de poder. Portanto, no mercado homossexual, assim como no heterossexual, as produções se restringem a cenas violentas quase que animalescas. Segundo a autora, essas relações de poder destacam como as convenções culturais contribuem para a construção dos géneros no âmbito sexual.

Não é preciso muito esforço, uma breve análise dessas revistas revela não apenas a exploração do desejo masculino, mas também a perpetuação de uma sociedade que, ao mesmo tempo que suprime a homossexualidade, lucra com as suas nuances.

A contradição entre a aparente aceitação comercial do desejo masculino e as estruturas sociais que historicamente reprimem a diversidade sexual é um microcosmo intrigante das tensões subjacentes na sociedade contemporânea digital em que vivemos.

As revistas de homens pelados não apenas desafiaram as normas culturais, mas também destacaram a fragilidade dessas normas quando confrontadas com o poder do mercado e a complexidade da sexualidade humana. Isso porque essa interseção revela, não apenas a exploração do desejo, mas também as fissuras nas quais as normas culturais se encontram quando confrontadas com a força erosiva da liberdade sexual.

Sintomas patológicos como satisfações substitutivas: a perversão digital

Christian Dunker, psicanalista brasileiro e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, desenvolveu na obra Reinvenção da intimidade: Políticas do sofrimento cotidiano” (2017), uma série de ensaios que abordam a fragilidade humana e o desespero social de uma sociedade digital que vive a sua própria Agonia de Eros (Byun-Chul Han). É o inferno dos iguais vs a farsa capitalista do indivíduo único comercializável.

Positividade tóxica. A busca por conteúdos pornográficos surge não apenas da premissa de uma satisfação sexual, mas também da investida (Freud) numa realização libidinal que sempre fora negada. Proibida. Para Freud, o reconhecimento da importância etiológica da vida sexual, em especial dos começos da sexualidade infantil, pode ser considerado uma das principais chaves para se entender os conflitos psíquicos enquanto gênese patogénica da repressão, identificando esses sintomas patológicos como satisfações substitutivas.

A série original da Netflix, e grande fenómeno mundial, Black Mirror, apresenta um episódio capaz de explorar algumas dessas tensões sexuais e desejos oprimidos. É puro entretenimento e prazer sensorial, para ser mais exato. No episódio Striking Vipers (2019), uma versão em realidade virtual de um videogame reaproxima dois amigos de faculdade; as sessões pela noite adentro levam a uma descoberta surpreendente. Sem dar muitos spoilers, essa produção visual é um produto cultural capaz de dar suporte imagético a esta narrativa sobre o prazer no masculino e a aversão moral a este desejo.

Levando em consideração a vida instintual (afetividade) da civilização, e deixando um pouco de lado esses impulsos internos um tanto muito conhecidos, pode-se dizer que o principal motor da evolução cultural do ser humano foi justamente essa sua privação externa real, que lhe negou a cômoda satisfação das suas necessidades naturais e o expôs aos “perigos imensos” de manter-se nas rédeas do moralmente aceito.

A civilização é fruto da repressão. Mas a gente tem que interagir para fugir do vazio da existência.

Logo, essa frustração externa nos obrigou à luta direta com a realidade, luta esta que resultou, em parte, em nossa adaptação a ela, sobretudo, à nossa submissão enquanto seres domina[ntes]dos, mas também nos levou ao trabalho em comum e à convivência com os semelhantes, o que já implicava numa renúncia a vários impulsos instintuais que não podiam ser satisfeitos socialmente. Mas parece que a internet ressignificou tudo isso.

Mercado do desejo: criadores de conteúdos adultos já somam milhares em todo o mundo

É certo que os progressos ligeiros (Bauman) na civilização fizeram crescer também as exigências da repressão. Contudo, por uma via em paralelo, os nossos desejos são alimentados pela “frouxidão” originada pela era digital. A psicanálise apontou que são sobretudo, embora não exclusivamente, impulsos instintuais sexuais que sucumbem a essa repressão cultural.

Afinal, a civilização se baseia na renúncia instintual, e cada indivíduo, em seu caminho da infância à maturidade, repete em sua própria pessoa esse desenvolvimento da humanidade rumo a uma sensata resignação. E consumir esse desejo faz parte desse processo de rendição ao prazer do mundo [individualmente] feito.

Uma parte deles exibe a valiosa característica de se deixar desviar dos objetivos imediatos, e assim põe sua energia, como tendências “sublimadas”, à disposição do desenvolvimento cultural: as novas relações. Mas outra parte, algo ainda mais profundo, permanece no inconsciente como desejos insatisfeitos e urge por uma satisfação qualquer, mesmo que deformada.

Assim, surgem os consumidores de plataformas como Onlyfans, Perfis +18 no X, Privacy e, claro, pornografia “amadora” e tantas outras formas de consumo de desejos e satisfações substitutivas, os chamados pervertidos, escravos da realização de desejos, dispostos às satisfações substitutivas dos desejos reprimidos que, desde a infância, habitam insatisfeitos a alma de cada pessoa. São corpos descartáveis que sustentam o mercado desmoralizado do desejo.

Para Sigmund Freud, a cultura tenta controlar a sexualidade tanto quanto possível, “prescrevendo um relacionamento heterossexual [normativo] vitalício como a única norma válida, e assim tornando todas as outras formas de sexualidade num tabu”. Contundo, ainda segundo o pai da psicanálise, essa norma é quase impossível de cumprir, pois “todos os indivíduos são, originalmente, bissexuais”.

De um lado, consumidores ávidos por consumir corpos em situações homeomorfas aos seus desejos mais profundos, de outro, produtores de conteúdos que se dedicam diariamente a criar materiais visuais capazes de atrair público para o seu negócio: prazer.

Artigo da autoria de Ícaro Machado

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