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Sociedade

CRIMINOLOGIA: UMA PROFISSÃO QUE NÃO É RECONHECIDA?

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A 30 de maio, Ângela Peixoto partilhou nas redes sociais um e-mail que enviou a Celso Manata (Diretor-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais). No mesmo expressava a sua preocupação com a situação da área em que se licenciou. Referia, também, que as funções que poderiam ser desempenhadas por criminólogos estão neste momento a ser exercidas por outros profissionais.

Qual a importância da licenciatura em criminologia? Quais são as áreas de atuação dos criminólogos?

A importância da licenciatura é, na minha opinião, de dimensões demasiado grandes para que possa ser ignorada e negligenciada da forma que está a ser. Falo, essencialmente, da licenciatura em Criminologia pela Faculdade de Direito da UP, porque nas restantes instituições não tenho conhecimento do plano de estudos, contudo acredito que não seja muito diferente. Algumas das áreas da atuação da criminologia são as que referi no e-mail. São um exemplo das competências que adquirimos e com as quais queremos e estamos preparados para trabalhar efetivamente. Somos capazes de conceber e executar de programas de prevenção e intervenção quer na reincidência quer de jovens em risco, trabalho em conjunto com as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) e Comissões de Dissuasão da Toxicodependência (CDT); avaliação do risco de reincidência criminal; competências de mediação penal; elaboração e planeamento de políticas de combate à criminalidade; investigação científica na área da criminologia (para auxiliar melhores decisões políticas, por exemplo); intervenção com vítimas, entre muitas outras.

Acho que as nossas áreas de atuação (que não são só estas) falam mais sobre a nossa importância do que eu posso falar. Essencialmente como auxílio aos poderes públicos para um melhor aproveitamento dos recursos e melhores resultados. Podem-me dizer que não é preciso ser licenciado em criminologia para trabalhar naquelas áreas, até porque são áreas que já existiam antes da própria licenciatura de criminologia em Portugal. É certo… Mas não podemos afirmar com toda a certeza que um criminólogo não faria um melhor trabalho. Eu sou capaz de pregar um botão e coser, mas não sou capaz de fazer um vestido de alta-costura. É algo que alguém especializado (neste caso, uma costureira ou um alfaiate) fará muito melhor que eu. É a mesma coisa que acontece quando hipoteticamente comparamos o trabalho de uma pessoa que sabe umas coisas a uma especializada nessas coisas.

 Que dificuldades tens sentido desde que terminaste o curso?

Creio que tenho as dificuldades que tem um recém-licenciado (especialmente na área das ciências sociais passa neste momento em Portugal). A acrescer a estas dificuldades normais, a agravante do reconhecimento e regulamentação da profissão de criminólogo estar ainda pendente (em termos legislativos), ao contrário do que a maior parte acredita.

Feliz ou infelizmente (dependendo do fim desta história), continuo a apostar na minha formação académica e tenho excelentes pessoas ao meu lado (pessoal docente, pessoal não docente, alunos que estão no mestrado, licenciatura e doutoramento…). São estas pessoas que vão permitindo que vá, passo a passo, lutando pela área, e que vão trazendo algum otimismo ao dia-a-dia que – sem estas pessoas – se tornaria completamente insuportável. Sou aluna da mesma faculdade há 5 anos, claro que ao fim de 5 anos ninguém fica indiferente a ninguém, desenvolve-se um espírito diferente de solidariedade, acompanhamento e a preocupação que sentimos uns pelos outros vai gradualmente esbatendo as fronteiras do profissional e vai passando também para o campo pessoal.

Recentemente, eu e mais umas amigas minhas da licenciatura tivemos uma ideia, fruto do desespero que é procurar emprego na nossa área e não encontrar. Pensámos em criar uma IPSS. Claro que nós não tínhamos a mínima noção por onde começar, o que fazer, como o fazer, com quem falar, etc. Só tínhamos a vontade, só isso. De um dia para o outro decidimos falar com dois professores que nos tinham dado aulas na licenciatura e tudo mudou: mudou o espírito tímido para um espírito lutador, percebemos mais ou menos alguns mecanismos, deram-nos logo um contacto, uma ideia de um projeto que podíamos desenvolver. Conclusão: na semana seguinte já estávamos a falar com o diretor da Já T’Explico – que nos deu a conhecer tantas coisas mais sobre o empreendedorismo social. Depois disso já falámos com mais uns quantos docentes de diversas áreas que nos têm vindo a ajudar mais e mais e mais. Claro que ninguém pode fazer o trabalho por nós, mas esta solidariedade e esta vontade de ajudar são gestos que nunca nos saem da cabeça. Da minha faculdade e dos docentes de Criminologia, posso afirmar que – pelo menos comigo – têm sido muito preocupados e solidários. Mas claro que não podem fazer muito mais que apoiar. Fazem o que podem, é certo. Não chega, mas ajuda a não desmotivar. Nós é que não podemos parar – e não vamos, certamente!

Achas que o nosso país ainda não atingiu a maturidade suficiente para reconhecer a importância desta licenciatura?

Não tenho a certeza se é uma questão de não ter atingido a maturidade, porque claramente nós temos excelentes iniciativas em Portugal em áreas adjacentes à criminologia. Acho que os criminólogos ainda não se fizeram ouvir de forma necessária e acredito que para a maior parte (de nós) é mais fácil aproveitar as oportunidades de emprego que nos vão sendo dadas (mesmo não sendo nossa área) do que lutar por algo maior. Acho que somos a geração que tem muitas ideias, mas como parecem inatingíveis muitas vezes desistimos e seguimos o caminho mais fácil. Somos muito pressionados a fazer as coisas certas, no tempo certo e da maneira socialmente aceite, e acabamos um bocado por sucumbir a esses caprichos da sociedade, em vez de não nos conformarmos.

Por outro lado acho que falta muita noção do que é isto da criminologia… Há falsas noções que confundem criminologia com criminalística e dizem que vamos ser todos CSI (risos). Depois há outros que acham que somos um ramo do direito. Não é, lá está, por falta de maturidade do nosso país necessariamente, mas sim um equívoco generalizado do que é a Criminologia – e muito por culpa nossa, acho eu – cujas potencialidades têm sido “arrumadinhas” no fundo da gaveta. Tenho conhecimento de algumas situações nomeadamente ao nível da atribuição de bolsas da FCT (Fundação da Ciência e Tecnologia) que me deixam boquiaberta e demonstram o tremendo desconhecimento da nossa área. Em primeiro lugar, não existe um painel de avaliação específico para a Criminologia, obrigando os candidatos a concorrer a painéis de áreas adjacentes como o direito, psicologia, etc… E depois acontecem casos em que projetos de Criminologia submetidos à FCT que tiveram notas excelentes de projeto, notas excelentes do orientador e instituição, e depois são recusadas porque os orientadores não têm “experiência científica relevante na área do direito”. Parece-me uma atrocidade e uma grande “facada” na Criminologia, bem como uma grande demonstração de ignorância até académica, se lhe quisermos chamar assim.

Escreveste um e-mail ao Dr. Celso Manata (Diretor-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais). Fala um pouco sobre o mesmo.

É verdade. O e-mail foi motivado por uma notícia de que dizia que o Diretor Geral de Reinserção e Serviços Prisionais queria mudar o sistema de atuação da Guarda Prisional, que iria durante meses fazer um curso que permitisse aos Guardas Prisionais “deixar de lado” o uso da força e passar a usar o cérebro. Neste sentido, a forma ideal de aliviar a tensão entre Guardas Prisionais e reclusos é deixarem os criminólogos trabalharem junto com os reclusos, fazendo planos individuais de intervenção, reabilitação, ressocialização e prevenção da reincidência. Nós sabemos como tratar um ser humano, ou é expectável que saibamos ao fim de 4 (ou 3) anos de licenciatura. Por mim falo. Quando entrei na faculdade em 2012, percebi que tinha tantos preconceitos, tanta “maldade” na forma de ver o mundo. Criminologia foi um grande “abre-olhos”. Dotou-me de uma sensibilidade que nunca pensei que me estava a passar tanto ao lado. Hoje em dia quando alguém começa a falar dos crimes, e dos criminosos e a defender a pena de morte e a prisão perpétua fico “chocadíssima”. Não posso dizer que não percebo: o ser humano é assim: é regido por paixões, e quando nos tocam na ferida somos – pelo menos a maior parte de nós – muito emotivos e queremos retribuir o mal. Eu fui essa pessoa. Felizmente já não sou. Felizmente, consigo fazer uma introspeção e perceber “ok… eu era assim porque, a, b, c ou d, mas felizmente consigo perceber agora a imensidão de variáveis que estão relacionadas com a passagem ao ato ou não”. Não quero que me interpretem mal e achem que eu estou aqui a dizer que quem comete crimes é o bom da fita, claro que não… Estou a dizer que, apesar de tudo, é um ser humano! Como todos nós, e merece ser tratado com dignidade e respeito, e merece outras oportunidades.

Tornaste público nas redes sociais o e-mail que escreveste. Pensas que isso poderá ser uma ajuda na mudança de rumo do curso?

Bem… Acho que este e-mail vai ficar na história. Na minha certamente ficará, mas não será só da minha, tenho a certeza. Da parte de todos aqueles que estão licenciados em Criminologia (não só pela FDUP como em todas as outras instituições como o ISMAI, Universidade Lusíada, Universidade Fernando Pessoa), dos que sonhavam em ir para criminologia e foram para outra área porque sabiam das dificuldades de empregabilidade, dos que ainda não se licenciaram, de pessoas fora de Portugal – o e-mail que publiquei no facebook chegou ao Peru e ao Brasil. Recebi inúmeras mensagens de apoio pelo que foi escrito. Foi de uma simplicidade e de uma informalidade única, todos nós fomos uma voz, todos nós fomos um “Eu”. Quando eu escrevi a carta em nota de fim escrevi: “Peço-lhe que pense com carinho sobre esta proposta, que vem escrita por uma, mas com a voz e o apoio de dezenas de criminólogos que querem trabalhar!”, mas mal eu sabia que seriamos centenas. Foram mais de 300 partilhas. Apesar do aparente impacto, ainda não foi desta que chegou a quem devia ter chegado, ou se chegou ninguém fez nada. Até hoje ainda não recebi nenhuma resposta, com muita pena minha. Mas de hoje para amanhã, quem sabe se não chega uma resposta.

O curioso nesta história é que o e-mail foi pensado de cabeça “quente”. No entanto, foi escrito com a dose certa de razão e paixão, esta que é uma luta difícil para mim que sou uma apaixonada pelas coisas às quais me entrego. Talvez por isso tenha tido tanta adesão que, confesso, não esperava. Não foram só criminólogos. Foram também juristas, psicólogos, advogados, economistas, enólogos… Uma série de partilhas, comentários, mensagens de apoio, agradecimento e incentivo. Por um lado a consciência de: “Ok… Eu sabia que não era a única!” e por outro o “Ai! Não acredito que somos assim tantos!”. É agridoce.

Se será uma mudança no rumo do curso… Creio que não, mas nunca se sabe! O inesperado acontece mais vezes do que prevemos.

De que maneira pensas que a atitude que tomaste pode influenciar mais licenciados em criminologia a lutar pelo reconhecimento do curso?

Sinceramente, não sei. A luta faz-se de várias formas, e esta foi uma forma. Eu optei primeiro por uma vertente mais pessoal, e só depois por publicitar. Mas só com aquela divulgação no facebook é que soube que mais gente já tinha lutado por isto noutros tempos. Pessoas que me disseram que mandaram alguns e-mails a “grandes nomes” e que, até à data, ficaram sem resposta. Espero que cada um de nós vá aproveitando as diversas formas de lutar pela Criminologia, mas acima de tudo nada me deixaria mais orgulhosa e satisfeita do que unirmos forças para mostrarmos o quão bons somos. Se conseguisse influenciar mais licenciados (ou mestres, ou doutorados em criminologia) era extraordinário. Acabaria por ser uma influência que extravasava a missão pessoal que tenho. Aliás, eu no e-mail que escrevi anexei alguns relatórios de estágio de colegas meus que estagiaram nos estabelecimentos prisionais e que conhecem bem melhor que eu o funcionamento e as necessidades dos mesmos. Só aí, acho que mostrei que mais do que uma missão pessoal era um alerta para os criminólogos acima de tudo, não para mim.