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Vigília pela Ucrânia no Porto: Uma Semente pela Paz

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Na passada sexta-feira (24), data em que se assinala um ano desde a invasão russa, decorreram em diferentes pontos do país vigílias de memória pelos milhares de vidas abaladas pela ofensiva. No Porto, o Coliseu do Porto aliou-se ao Núcleo da Associação dos Ucranianos da Área Metropolitana do Porto na concretização simbiótica de um concerto solidário que terminou numa caminhada solidária. A data ficou marcada pelo lema “Não esquecer” e pela união dos povos ucraniano e português que, abraçados pela bandeira azul e amarela, entoavam palavras históricas da resistência ucraniana.

Organização da vigília

Foi pelas mãos da Associação dos Ucranianos em Portugal que surgiu iniciativa de, por todo o país, congregar numa só voz a comunidade portuense e ucraniana, batendo pé pela paz, no traçar de uma caminhada em que se auscultavam, simultaneamente, a coragem e sofrimento de uma nação acometida pela guerra. Apesar de ter nascido já há mais de duas décadas, como indica uma das suas representantes, Svetlana, ao JUP, apenas no último ano se sedimentou no Porto, formando o Núcleo da Associação dos Ucranianos da Área Metropolitana do Porto. Esta entidade, com o apoio do Consulado da Ucrânia no Porto, foi fulcral na organização da vigília que iluminaria as ruas do Porto com os tons da bandeira ucraniana. Procuravam, essencialmente, agradecer ao povo português pela “colossal ajuda humanitária” que desde o início da guerra havia prestado e, ainda, apelar a que esse movimento tivesse continuidade, marchando em uníssono pela resistência ao totalitarismo.

O ponto de concentração seria, inicialmente, a Praça Dom João I, no Porto, contudo, apenas dias antes do evento, receberam a proposta do Coliseu do Porto Ageas “Contactaram-nos a avisar que gostavam de fazer parte, alguns representantes reuniram com eles e traçaram um outro plano do evento que começou pelo coliseu e seguiu então para a vigília”. Sensibilizados pela causa, reuniram-se por “Uma Semente pela Paz” Ana Deus, Best Youth, Iryna Horbatyuk, S. Pedro e Pedro Abrunhosa, cujas atuações, interpretadas por Claúdia Braga, em LGP, mobilizaram centenas de indivíduos para a Rua Passos Manuel. Em comunicado, Miguel Guedes, presidente do Coliseu, indica “Há um ano, a percepção da nossa realidade mudou e o Coliseu Porto Ageas não pode ficar alheio à mudança (…) convidamos as pessoas a uma demonstração cívica de pertença, assinalando a esperança de paz, semeando-a, em frente ao Coliseu”. A colaboração permitiu que o evento tomasse proporções mais sólidas, indicou Svetlana, expressando, ainda, que “os ucranianos sentiram-se apoiados pelos portugueses, gostaram dessa iniciativa, ficaram surpreendidos e muito agradados por não se ter resumido à caminhada e discursos, ficamos comovidos com o apoio do coliseu”, uma sensação que também o presidente do núcleo, Ivan Muzychak, apoia “Hoje juntamos muitas pessoas e partilhamos este evento com o coliseu, que nos ajudaram a juntá-las. O nosso objetivo era este, e agradecer”.

Apesar da realização de eventos desta dimensão comportarem esforços logísticos significativos, os membros da comitiva organizadora indicam ao JUP terem sido tarefas desenvolvidas com relativa “facilidade”. Questionada acerca da origem da comemoração, Sofia Muzychak, filha de Ivan e, também ela, representante do Núcleo supracitado explica ter sido acessível devido à “solidariedade presente”, salvaguardando a importância da mão portuguesa sempre estendida:

“Isto tudo começou com a invasão quando começamos a juntar quatro, cinco caixas e acabamos por enviar dez camiões e vinte carrinhas lotadas de apoio humanitário. Começamos a falar entre nós… porque é importante haver apoio, falarmos, gritarmos que somos contra e que estamos a apoiar e acabamos por fazer uma coisa gigante, o coliseu do Porto fez um ótimo trabalho por se ter juntado a nós, dado a sua voz, e foram basicamente as pessoas que fizeram isto, nem fomos bem nós. Estamos focados no trabalho que fazemos, que tem sido muito grande, por causa dos portugueses que nos estão a ajudar”

Irina Horbatyuk, artista e membro da comitiva organizadora justifica não ter sido difícil a concretização do evento pois “ninguém precisava de uma motivação extra para isto porque estamos todos unidos numa esperança, numa vontade, é o que nos faz juntar, fazer, promover, andar, marchar, cantar e chorar”.

Sara Coelho, assessora de comunicação da sala de espetáculos que deu corpo à manifestação descreveu, a título pessoal, que, enquanto colaboradora sente “muito orgulho por ter uma casa que é de direito público, de serviço público… é também o nosso dever” explicando, ainda, não ser a primeira vez que se aliam à causa, “já fizemos também um concerto pela paz com artistas ucranianos em que angariamos verbas para a cruz vermelha portuguesa, para o fundo de  emergência de apoio à população ucraniana, também um ensaio solidário para angariar verbas para a população ucraniana e para os refugiados em Portugal”. Acerca da pertinência da continuidade na realização de movimentos de apoio à comunidade ucraniana, explica ainda que “há tantos ucranianos a viver aqui em Portugal e no Porto que temos de mostrar que estamos ao lado do povo ucraniano, não esquecemos a situação e escolhemos fazê-lo apelando à paz, pela linguagem da arte que é a linguagem universal e com artistas que quiseram doar o seu trabalho por esta causa”. Apesar do exposto, e reconhecendo que “passado um ano, infelizmente, temos de fazer mais uma ação de sensibilização, porque a guerra ainda continua” ressalva o impacto destas ações “acho que a população ucraniana que está a viver em Portugal se sente muito acarinhada pela população portuguesa, neste tipo de eventos, e, sobretudo, quero agradecer aos artistas que possibilitaram e doaram o seu tempo a esta causa”.

 

“Uma semente pela paz”

O evento teve início ao final da tarde, na Rua Passos Manuel, junto ao coliseu do Porto, onde se reuniram centenas de pessoas, entre as quais o presidente da câmara do Porto, Rui Moreira, acompanhado pela vereadora da câmara municipal, Catarina Araújo. Marcaram também presença figuras políticas diversas, entre as quais, Catarina Martins, coordenadora do Bloco de Esquerda, Tiago Mayan, fundador da Iniciativa Liberal e Jerónimo Fernandes, representante da Associação dos Conservadores do Norte.

Breves momentos antes do início do concerto promovido pelo Coliseu do Porto Ageas, voluntários da Associação dos Ucranianos em Portugal ajudavam a preencher a rua do Porto, cedendo laços simbólicos na cor da bandeira ucraniana a todos os que por lá se encontravam. O JUP conversou com uma das colaboradoras, Tânia Rocha, que explicou ser voluntária desde o primeiro dia da guerra, mantendo presença nas ações desenvolvidas pelo núcleo para “Não deixar esquecer, continuarmos a lutar por um mundo melhor. Neste caso é a Ucrânia, mas não sabemos quem virá a seguir”, apelando à união das comunidades na luta em causa.

Ao soar do badalar das dezoito horas Ana Deus abre o evento, da tribuna do coliseu, explicando não saber o que cantar face a “uma guerra que nos envolve a todos e que começou com a loucura de um só homem”, partindo para a interpretação de um texto de Boris Vien, O desertor, um poema que ressalva ter sido  recuperado por José Mário Branco durante a guerra colonial portuguesa e que alude à resistência face à guerra, sendo, por isso, dedicada pela artista ao povo russo.
Os momentos de silêncio proporcionados preenchem-se rapidamente pelo entoar das palavras de ordem que permaneceriam por toda a noite, “Slava Ukraini” (Glória à Ucrânia) e a resposta à mesma, “Heroim Slava!” (Glória aos heróis), historicamente simbólicas para o povo ucraniano pela sua representação na Guerra da Independência, cerca de 100 anos antes do conflito atual.

Uma mulher ucraniana, entre a multidão que se forma, indica ao JUP “Vim para o Porto em Março do ano passado com os meus três filhos e estamos todos a adorar estar aqui, com uma comunidade tão solidária para com o povo ucraniano” O seu discurso é interrompido pelo vociferar das palavras de ordem, às quais não hesita em responder. Assim que o momento propicia continua a sua exposição “Viemos como refugiados, escapamos no sétimo  dia de guerra de Busha, um dia antes da ocupação total da região pela Rússia, fomos muito sortudos”. Agradecida pelo caloroso acolhimento, explica marchar porque “o principal objetivo hoje é mostrar união entre os ucranianos, temos um luto muito pesado e é difícil lidar com ele sozinho, mas juntos conseguimos aliviar este sentimento, ultrapassar o trauma. A guerra é algo inimaginável e horrível, queremos relembrar o mundo que isto ainda esta a acontecer e ainda não é seguro voltarmos”.

Segue-se a interpretação de Irina Horbatyuk que, não deixando de agradecer a solidariedade portuguesa, apela à continuidade da ajuda. Às 18h24 minutos, a artista introduz um minuto de silêncio, realizado em virtude das incontáveis vítimas da hostilidade patente no último ano. Ao JUP, a artista indicou ter sentido esse minuto “como se o mundo inteiro suspendesse uma respiração”, explicando que “como cidadã ucraniana, tenho muita esperança, o povo ucraniano é muito corajoso e deu provas disso ao longo deste ano, quase diariamente temos testemunhos de grande heroísmo dos nossos soldados e também somos testemunhos de participação dos voluntários de todo o mundo que guerreiam ao nosso lado”. Na meia hora que se segue os restantes artistas dão seguimento às suas prestações, procurando, através da arte, acalentar o sofrimento das centenas de pessoas que os ouvem.

Entre os espectadores encontra-se Francisco Vilhena, presidente da associação Slava em Portugal, acompanhado por Dana, também ela dirigente associativa da organização, e João Paulo, estudante de sociologia e ativista pelos direitos humanos. Francisco começa por destacar o papel da sua associação, uma das primeiras a dar resposta à situação em referência, na reintegração profissional e social dos refugiados, lembrando as cerca de duas centenas de vidas salvas nesse âmbito, motivo pelo qual se encontra solidário face à entidade organizadora e as inúmeras pessoas homenageadas. Reconhece existir ainda muito trabalho a ser feito, já que, mesmo que se aviste uma vitória, os ucranianos voltarão para um país devastado, contudo, aponta o dia vivido como dia para lembrar as conquistas alcançadas:

“Um amigo meu dizia-me há cinco minutos atrás que isto não é um dia triste, é um dia de resistência, é um ano a resistir, os ucranianos em Portugal são resistentes, falamos de pessoas que perderam casas, familiares”

Dana concorda com o presidente, recordando, por outro lado, os amigos e familiares perdidos e o receio constante de, apesar da sua família morar numa região onde a hostilidade não se encontra ainda vincada, “nunca saberemos onde a próxima bomba pode cair”.

O português João Paulo apela ao ativismo, explicando que “não faz sentido um mundo em guerra nesta altura, no séx. XXI, não faz sentido nenhum, devíamos todos poder ser livres de pleno direito e sem medos e isto é um problema de todos, não é da Ucrânia, é um problema do mundo. Se o mundo não pensar assim, sucumbe. Não se aboliram fronteiras porque é bonito, aboliram-se porque somos povo do mundo”.  Expressa que as ações de Kremlin não lhe garantirão uma conquista porque “não se conquista uma terra devastada e é isso que estão a fazer na Ucrânia, estão a devastar um terreno, uma cultura, uma sociedade que estava muito bem organizada e muito próspera” e, entre as suas palavra,  ouve-se a interpretação do poema Natal de 1945, de Jorge Sena que reflete esse mesmo cenário, “chama-os para que vejam com os seus próprios olhos a terra imensa: era tão grande a terra! E depois, logo depois, na noite extrema que os abrigará materna em pleno dia – toca de novo a silêncio, ó clarim do mundo! É silêncio o que eles pedem, só silêncio, mais nada

O ativista invoca, ainda, a extensão dos impactos da guerra ao nível da dimensão financeira, que se tem verificado por todo o globo e que se reflete no elevar dos preços dos bens alimentares:

“Há pouco explicavam-me os preços da bandeira e esta parte (amarela) tem a ver com aquilo que comemos todos os dias, o pão, as pessoas reclamam do preço do pão, mas esquecem-se que o grão está a ser importado da Ucrânia e que se as coisas continuarem assim podemos deixar de o ter, ou tê-lo muito caro”

O grão e as sementes, que representam também a cultura do país, dão nome à primeira parte do evento, que recuperam o simbolismo do girassol enquanto flor da paz que é, também, símbolo nacional, como explica a jovem Carmen, diretamente para o JUP, enquanto as colaboradoras do Coliseu Porto Ageas distribuem sementes de girassol pelos presentes:

“O girassol gira em volta do sol e cresce muito alto, isso representa o amor pela pátria, como ele é tão elevado. Tornou-se um símbolo de resistência para nós também e no início da guerra havia mulheres ucranianas a distribuírem sementes de girassol pelos soldados russos. Ele está também presente na nossa cultura, na comida, nas roupas, é o nosso símbolo”

Continuando o seu discurso, a jovem reforça o espírito de união, luta e patriotismo que caracterizam o povo ucraniano:

“O dia de hoje marcou todos os ucranianos para sempre, marcou os 65 milhões deles espalhados por todo mundo, foi um momento muito doloroso para todos nós apercebermo-nos que a nossa terra estava  a ser atacada só por querer ser independente, só porque queríamos ser a nação que sempre fomos. Este dia marca não só um ano de sofrimento, um ano de martírio, mas também um ano de resistência, de força, de esperança, de muito amor. Amor não só pelos irmãos ucranianos, mas pelo pais e pela terra em que os nossos antepassados viveram, cuidaram e cultivaram este tempo todo. Neste momento estamos a ser uma comunidade unida como sempre fomos e mais do que nunca estamos unidos e dispostos a lutar pelo que é nosso. Mais vale lutar do que ficar com os braços para baixo, nós lutamos todos de forma diferente, alguns estão na frente, no exército, outros estão aqui a participar em protestos e em atividades que promovem a atenção ao conflito e este momento é importante para nós por isso mesmo. Hoje estamos unidos e o nosso sofrimento é o mesmo e nós compreendemo-nos independentemente da língua pois se há coisa que não precisa de língua é ser ucraniano”

Sofia Muzychak, enquanto estende a longa bandeira azul e amarela pela comunidade presente, ancora-se também no patriotismo ucraniano, reforçando a importância de mostrar apoio a um povo cujos tumultos se perpetuam por via da ofensiva russa. Reforça, assim, que “para além de tudo, sou ucraniana e custa-me imenso estarmos a passar por isto, por esta guerra, ninguém precisava dela, o mundo já está com muitos problemas após o COVID, esta guerra era completamente evitável. Queremos apoiar as pessoas que perderam as suas casas, as famílias destruídas, mulheres e crianças violadas” Apela, ainda, à prestação de apoio por parte do ocidente e continuidade do espírito batalhador do seu povo, um voto também veiculado por Irina, que pede que “não adormeçam na esperança que vai terminar por si só, não, temos que fazer a nossa parte, cada um tem que fazer alguma coisa que pode, que sabe que vamos fazer melhor e assim sim, vamos vencer”.

Entre as bandeiras azuis e vermelhas encontram-se, ainda, algumas vermelhas e pretas, também elas símbolo do nacionalismo ucraniano, destaca-se uma bandeira europeia, envergada por Hugo Abreu. O português explica ter trazido a bandeira por causa do “horizonte europeu que a Ucrânia tanto deseja e que esteve, no fundo, na origem da revolução de Maidan em 2014”, considera que “a Ucrânia foi tão massacrada por querer ser europeia, por isso senti que era importante estar aqui com a bandeira europeia”. Atento aos testemunhos que o envolvem, indica que os acontecimentos que marcaram o último ano o perturbaram, “a guerra com esta intensidade voltar à Europa, senti que tinha de estar aqui para apoiar a Ucrânia. A tendência humana é para esquecer, nós banalizamos, é algo que não podemos deixar que aconteça porque o povo ucraniano continua a sofrer todos os dias”.

Pedro Abrunhosa pede, dedica a música Hallelujah a todos os que “pereceram neste infeliz conflito, nesta injusta guerra, nesta agressão da Rússia à Ucrânia” explicando que a palavra que dá nome à melodia simboliza “luz” e “paz”, por meio dos versos da canção, pede que se acendam as “luzes da alma”, todas aquelas que os presentes tenham consigo, já que “hoje o Porto tem de abanar o resto do mundo, haja luz”. Ainda antes de encerrar a primeira parte do evento, apela a que o grito pela paz se ouçam em  Kiev e em Moscovo e recorda que que há dor, também, entre o povo russo.

 

Artigo escrito por Carina de Seabra

Multimédia por Bárbara Pedrosa (fotografia e vídeo)