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Ciência e Saúde

MOBILIDADE NAS “CIDADES DO FUTURO” ESTÁ (TAMBÉM) NAS MÃOS DE UM PORTUGUÊS

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Nem sempre o percurso académico se desenvolve como esperado. O de Sérgio Batista não fugiu a esta exceção. Concluída a licenciatura em Astronomia e os mestrados em Astronomia e Engenharia Matemática, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP), candidatou-se a uma bolsa de doutoramento na área da Astronomia. No caso de uma resposta positiva, ficaria por Portugal o tempo necessário para a obtenção deste grau académico. No entanto, a ideia de ir para o estrangeiro já estava presente nesta altura: esperava a conclusão do doutoramento para partir à descoberta de outros países e aprofundar conhecimentos na sua área de estudo.

Não correu como programara. Devido às restrições financeiras que o país enfrentava, consequência da crise, deu-se “um corte drástico” no número de bolsas de doutoramento atribuídas a várias áreas. Sérgio não conseguiu o financiamento que ambicionava. Foi necessário restabelecer objetivos: fora de vista o doutoramento em Portugal, a Holanda torna-se o próximo destino. “Decidi portanto aventurar-me no estrangeiro mais cedo do que inicialmente previa”, comentou o investigador. Durante um ano, esteve na Holanda a desenvolver trabalho na área da modelação de atmosferas planetárias – uma junção entre Ótica e Eletrodinâmica –, com aplicações na Astrofísica. Não esteve mais tempo porque, mais uma vez, nem tudo correu como planeara. O investigador confessou não se sentir “satisfeito pessoalmente nem profissionalmente”, pois, pela experiência de colegas mais velhos, “antevia um futuro sem estabilidade laboral”.

Arquitetando a mobilidade: de Portugal para França e Emirados Árabes Unidos

Com o desânimo sob controlo e um doutoramento por concluir, decidiu procurar oportunidades noutra área e noutro país. Foi a França que o recebeu a seguir e foi à Matemática Aplicada que se passou a dedicar. No âmbito do projeto europeu ERC MAGnUM – Multiscale and Multimodal Traffic Modeling Approach for Sustainable Management of Urban Mobility –, com a supervisão de Ludovic Leclercq, que classificou como “jovem, brilhante e exigente”, concluiu o doutoramento na área da modelação matemática em sistemas de transportes urbanos multi-modais. “Tive a sorte de trabalhar com uma excelente pessoa, que me permitiu abrir novos horizontes no mundo da investigação em transportes (e numa área completamente diferente da Astrofísica)”, expôs Sérgio. “É interessante observar como é que os mesmos conceitos físicos são por vezes aplicados a diferentes áreas de investigação”, acrescentou.

Durante o doutoramento, esteve integrado no grupo LICIT – Laboratório de Investigação em Mobilidade e Transportes. O português explicou que se trata de “um grupo relativamente pequeno e jovem, mas reconhecido internacionalmente pelo seu mérito de produção científica na área dos sistemas de transportes”. No decorrer deste ciclo de estudos, teve oportunidade de participar em conferências em Portugal, diversos países europeus, Estados Unidos da América e Hong-Kong. Participou ainda na “maior conferência anual em transportes do mundo, em Washington, por três vezes durante os três anos e meio [que esteve em França]”, contou. “Isto permitiu-me partilhar o meu trabalho de investigação com os meus peers [pares], ser exposto à crítica e obter feedback por parte de outros cientistas, assim como criar e alargar a minha rede de contactos”, acrescentou.

Desta fase destaca ainda o período que esteve com Nikolas Gerolominis, na École Polytechnique Fédérale de Lausanne. Da colaboração entre este professor, o seu orientador e Sérgio resultou a publicação de um dos artigos que advieram da sua tese de doutoramento numa “revista de topo”. A sua passagem por França tratou-se de “uma nova aventura” enquanto investigador, que teve valor não só pelo país, mas muito devido ao seu orientador e ao grupo no qual trabalhou. Quanto ao ensino, pela sua experiência, aquele país “tem uma excelente academia e nível de investigação”, partilhou.

Sérgio Batista estudou na FCUP, doutorou-se em França e é atualmente investigador nos Emirados Árabes Unidos

Sérgio Batista estudou na FCUP, doutorou-se em França e é atualmente investigador nos Emirados Árabes Unidos

Dado este passo, surgem novas oportunidades como consequência do bom trabalho desenvolvido durante a tese de doutoramento. Atualmente, trabalha em regime de pós-doutoramento, na mesma área do doutoramento, com Mónica Menendez e é o polo de Abu Dhabi da Universidade de Nova Iorque, nos Emirados Árabes Unidos, que o acolhe. Do confronto entre as várias realidades que viveu, surgem as reflexões quanto a condições laborais, entre outros aspetos.

Condições laborais em investigação: Portugal e outros países 

Sérgio constatou que há diferenças “enormes” entre a academia portuguesa e a francesa. Os primeiros aspetos que realça dizem respeito às condições a que têm acesso os alunos de doutoramento. Frisou a possibilidade de, em França, ser atribuído um contrato de trabalho durante os três anos de duração de um doutoramento. Este contrato permite o acesso aos direitos sociais “como qualquer outro trabalhador” e são pagos impostos sobre o mesmo. A isto acresce o direito ao fundo de desemprego, segurança social e pensão, assim que o contrato termine.

Por contraste, em Portugal, esta possibilidade não existe. Aqui, o financiamento é atribuído através de uma bolsa e não há acesso ao fundo de desemprego. Segundo o investigador, “em Portugal ainda se olha muito para um doutorando/a como um estudante”, o que considera incorreto. “Embora tratando-se de uma formação académica, acho que deveríamos olhar para um doutorando/a como alguém já em início de carreira”, acrescentou. O português deu o exemplo do termo jeune chercheur/chercheuse, usado em França para o tratamento de “doutorando/as ou pessoas no início da sua formação doutoral”.

“[…] em Portugal ainda se olha muito para um doutorando/a como um estudante”

Há também diferenças relevantes quanto ao plano de estudos conducente ao grau de doutor. Por exemplo, em Portugal, o primeiro ano do doutoramento caracteriza-se por um conjunto de unidades curriculares às quais o estudante é submetido a avaliação para obtenção de aprovação. Pode também acontecer em países como França e Holanda, mas, nesses casos, o horário está estruturado em moldes diferentes. Há algumas disciplinas, “uma ou duas”, que carecem de avaliação para aprovação, mas o resto do tempo é dedicado à investigação para o desenvolvimento da tese de doutoramento, o que é essencial, uma vez que “o período de três anos é extremamente curto para a realização de uma excelente tese” e para a “publicação de diversos artigos em revistas de topo”.

Para além disto, aos estudantes é-lhes dada formação em áreas transversais como desenvolvimento pessoal e profissional e é obrigatório estarem presentes num número definido de seminários. Sob a forma de workshops, aprendem, por exemplo, “como fazer uma apresentação em público” ou até mesmo “como escrever um artigo”. Na Suíça, segundo a descrição do investigador português, os alunos que se encontram nesta fase do percurso académico são “contratados para lecionarem um número mínimo de horas de aulas teórico-práticas”. Na Holanda e França esta possibilidade é opcional. A “oportunidade de supervisionar estudantes de mestrado” é também um ponto que distancia esses países de Portugal.

Na perspetiva de quem leciona, há um modo de funcionamento díspar do ensino português no que diz respeito à carga horária. Da realidade percecionada por Sérgio, em França, um professor universitário leciona duas a três unidades curriculares por ano, assim como na universidade onde está, nos Emirados Árabes Unidos. Em Portugal, os professores contam com “3 a 4 disciplinas por semestre, se não mais. Isto retira-lhes tempo para se dedicarem à investigação e [tempo para conseguirem] projetos financiados, trazendo dinheiro para a sua faculdade/universidade”, refere.

Para Sérgio Batista, uma redução na carga horária de lecionação levaria a um aumento de dedicação à investigação por parte do corpo docente. “Por um lado, as universidades poderiam contratar mais docentes jovens para o seu quadro, resolvendo um dos grandes problemas da academia portuguesa, no que toca ao envelhecimento do quadro docente […] por outro lado, permitiria seguramente obter mais projetos financiados, a nível internacional”, expõe. A isto acresce o aumento da disponibilidade para supervisão de estudantes e para comparecerem a colóquios e eventos internacionais, onde se conhecem projetos e se estabelecem colaborações.

O estudo da mobilidade nas cidades

Neste momento, o investigador português dá continuidade ao estudo que iniciou no seu doutoramento. O seu objetivo é direcionar as escolhas dos utilizadores das grandes metrópoles para diferentes percursos, fazendo com que cada pessoa, dependentemente do seu objetivo, tenha uma melhor qualidade no trajeto que percorre dentro da cidade. Um exemplo da qualidade referida é o congestionamento do percurso escolhido até chegar ao destino. Se se considerar uma cidade onde o trânsito é lento, é mais provável que os envolvidos nesse trajeto não cheguem a tempo ao local de destino.

O que Sérgio está a desenvolver é um sistema que permita organizar a deslocação dos utilizadores das cidades por objetivos. Por exemplo, tenhamos em conta o caso de alguém que se dirige a um centro comercial, utilizando o mesmo trajeto que uma pessoa que se dirige para o seu local de trabalho. Ambos se deslocam pelo mesmo caminho, mas com objetivos diferentes. Segundo o português, “uma pessoa que vá a um shopping, atribui um valor diferente ao seu tempo de percurso, dado as restrições de ter de chegar a horas ao seu local de destino não serem as mesmas quando comparado com o caso de um utilizador que se desloque para o seu local de trabalho”.

E este é o desafio deste cientista: conciliar as preferências e os hábitos de “todos os utilizadores de uma rede de transportes”, que por si só são diferentes. “Dedico-me ao desenvolvimento de ferramentas para modelar as escolhas dos utilizadores pelo seu itinerário e modos de transporte, considerando as suas preferências e as razões para as suas viagens”, explicou. Em agosto deste ano, Sérgio Batista deu a conhecer um pouco mais do trabalho que está a desenvolver num artigo de opinião que escreveu e que está publicado na página da internet da Fundação Francisco Manuel dos Santos, disponível para consulta.

Portugal e o (longo) caminho a percorrer

Procuramos saber junto do investigador quais os aspetos que poderiam ser melhorados em Portugal em domínios como oportunidades académicas e condições laborais na Ciência. A resposta surgiu objetiva, propondo uma base de reflexão. Sérgio tocou em aspetos como a génese da existência de áreas da Ciência, Tecnologia e Inovação, afinal, “deve-se apostar em carreiras universitárias de investigador e professores separadas ou devemos apostar numa carreira do professor-investigador?”. Sugeriu também a abertura de concursos mais regulares para os quadros de universidades e centros de investigação, a regularização do investimento em novos projetos de investigação, “para que as equipas de investigação, centros e universidades consigam programar as suas atividades”. A tudo isto, acrescentou a necessidade de criação de “condições para carreiras de investigadores e professores universitários baseadas na meritocracia e reconhecimento internacional pelos pares”.

“[…] deve-se apostar em carreiras universitárias de investigador e professores separadas ou devemos apostar numa carreira do professor-investigador?”

“Deve-se apoiar as pessoas que já estão dentro do sistema científico nacional e que para ele têm contribuído ao longo das suas carreiras; criar condições atrativas para que os cientistas portugueses que se encontram fora regressem e contribuam com novas ideias e visões diferentes para o sistema científico do país; fomentar a atratividade de Portugal como um país que valoriza um sistema científico estável, por forma a atrair igualmente cientistas estrangeiros para os quadros portugueses”. Estas são também medidas que o cientista português quis deixar em formato de sugestão.

Para quem se quiser aventurar a ir para fora do país-natal, Sérgio deixou o conselho de, primeiro, avaliar se o país de destino reúne as condições necessárias para que o “aventureiro” se sinta confortável no que diz respeito, por exemplo, ao idioma e cultura. O “ponto fundamental” é a auto-realização, mas que não se tenha “medo de abraçar essa nova aventura”, pois “uma experiência no estrangeiro, traz-nos sempre desafios interessantes que nos ajudam a crescer pessoal e profissionalmente e sobretudo a criar uma nova visão sobre o Mundo” – concluiu.

O trabalho desenvolvido por Sérgio poderá ser consultado no seu perfil na plataforma ORCID, que serve para a identificação de investigadores.

 

Artigo elaborado por Álvaro Paralta. Revisto por Mariana Miranda.